Thursday, July 29, 2010

Aulas de Piano

Düsseldorf (roupas secando, falta estender no varal...)

O final de semana entre 16-18 Juillet em Paris foi tao bom que rendeu uma crônica sobre os causos contatos pelos companheiros de mesa. O dono de blog sou eu, mas Ela é a verdadeira escritora da casa e é Dela a autoria do texto abaixo. Sou apenas um enganador.



Dó, ré, Dó ré, Dó, ré: era esse o som dos passos de Dona Dulce se aproximando de minha casa. Quando ouvia esse compasso meu corpo comecava a tremer. O coracao acelerava. Sentia um friozinho atrás da nuca.  Dona Dulce, sempre impecável em sua saia rodada. Um coque alto puxando os cabelos para trás e os óculos redondos beirando a ponta do nariz. Chegava sorridente, com uma sacolinha cheia de partituras.  E entao comecavam as duas piores horas da minha semana: as aulas de piano.

Comecavamos com um aquecimento muito chato, em que eu tinha que cantar la, la, laaaaaaaa, junto com Dona Dulce. Consertar a postura e exercitar os dedos. Meu maior medo era que algum dos meus colegas de sala passasse pela porta de minha casa naquelas horas e me ouvisse cantando pela janela: seria o fim da minha reputacao escolar aos oito anos de idade.

Como se nao bastasse toda a chatisse das aulas, no final ainda havia um ritual completo. Minha mae chegava com brioches da Colombo, colocava a mesa de chá e ficávamos ali, os tres, mais uma hora saboreando brioches com chá. As duas tagarelando sem falar, sobre assuntos importantes como o adultério da vizinha. E eu, sentado, balancando as pernas imaginando a cara da Dona Dulce entupida de tantos brioches e chás. Eu matava a Dona Dulce todas as quartas-feiras lentamente nos meus pensamentos antes de dormir. Imaginava o enterro de Dona Dulce deitada em sua saia rodada, com o coque sobre a cabeca. Ao fundo um som de Dó, ré, Dó, ré, que era para embalar seus passos rumo ao céu.

As visitas chegavam em casa e logo perguntavam: quem toca piano? E claro, eu era obrigado a tocar uma ou duas músicas com um sorriso no cantinho da boca, para alegria e orgulho dos meus pais.

Pedi várias vezes para minha mae me tirar daquelas aulas, pois ser pianista estava longe dos meus planos de futuro. Mas ela insistia que o instrumento era fundamental para minha formacao.

Entao descobri que Dona Dulce detestava Bach e passei a me especializar no pianista alemao. Eu investia minha semanada comprando partituras de Bach e me empenhava ao máximo para tornar aquelas duas horas tao entendiantes para Dona Dulce, quanto para mim.

Até que um dia recebemos uma carta de Dona Dulce, a letra tremida, dizendo que infelizmente teria que interromper as aulas, pois havia sido diagnosticada como E S C L E R O S A D A. A carta enfatizava a doenca assim mesmo, com letras garrafais. E S C L E R O S A D A! Como eu amei essa palavra e essa doenca que significou minha liberdade.

O piano ficou esquecido no canto da sala, junto com as partituras de Bach e só fui me lembrar dele quando já com meus quarenta anos me mudei para Humaitá e comprei um casarao antigo. Senti que faltava algo na sala e tive certeza que o piano ficaria bem ali. Liguei para minha mae, avisando que o buscaria no final de semana seguinte.

– Mas meu filho, o que vou falar para seus irmaos? O piano é de voces cinco.
- O que? Nao tem conversa, fui o único a ter aulas de piano durante DEZ anos com Dona Dulce, que Deus a tenha, pobre coitada, morreu E S C L E R O Z A D A. O piano é meu, por direito adquirido e quem quiser que venha falar o contrário comigo.

E aqui veio parar o piano, aos pés da minha sala.

E até hoje quando o dia é frio e a lua insiste em descer sobre o Corcovado, eu me sento e dedilho um Dó ré, dó ré, com gosto de brioche e chá, que me faz relembrar de Dona Dulce e  pensar que as aulas de piano nem eram tao ruins assim...

2 comments:

O sonho de uma sombra said...

Muito bom, parabéns, escritora!

Que alegria ler crônicas tão bacanas e tão bem escritas, de uma pessoa que eu adoro e admiro!

Também quero um reforço desses pro meu blog!

E quem sou eu?
shnessec

Patricia... said...

No final das contas, dá até pra simpatizar com a esclerosada da Dona Dulce... Dó ré, dó ré, dó ré...