Monday, March 26, 2012

As Ovelhas do Reno

Düsseldorf (sozinho é ruim...)

O inverno acabou, a primavera chegou e o horário de verao europeu também. Está aberta a temporada de churrascos. Impressionante como muda tudo em uma semana. O astral das pessoas principalmente. É como se saíssem de uma camisa-de-forca.

A idéia era sair um pouquinho mais cedo pra chegar em casa, pegar a bike e dar um rolé. Ela tá em Lisboa resolvendo assuntos jurídicos mirabolantes. Como gosto de ficar sozinho só quando tenho companhia, resolvi me mandar. No caminho já vi a bola laranja vagarosamente descer. Achei que daria tempo. Larguei tudo, peguei as luzinhas e a bike, e o remédio do chefe, e me mandei na direcao da claridade. Ainda via a borda superior ir calmamente mergulhando numa rua qualquer entre os prédios.

Cheguei na praca principal, cheia, e só uma alaranjado me esperava. Vi tiradores de retrato, a turma da escadaria, dois velhinhos e uma senhora proseando. E uma velha puxando com dificuldades um carrinho de supermercado lotado de latinhas vazias. Ela tava de verde.

Passei pelo Eis Cafe do Altair e virei na Ratinger Straße. Ali temos um altar do lado de fora da igreja. Fiz o sinal da cruz em respeito e observei a sombria igreja. Por que gosto tanto de catedrais?! Do seu silêncio?! Das pessoas que ali vao orar?! Da arquitetura e obras de Arte?!

No gramado em frente a Kunstakademie os alunos faziam arte literalmente. Quis ser um deles. De jogar tudo pro alto e ali sentar. E conversar, em alemao, sobre os rumos do Mundo, o sentido da Arte e por que ninguém nao lê mais. No Brasil por que aqui a indústria editorial e literária só cresce. Com transporte público de qualidade a coisa mais fácil e prazeirosa de fazer o Tempo passar, que coisa estúpida, é ler um bom livro. Ou revista. Tenho saudades.

Continuei pela orla do Reno. Ou Rhein. Der Rhein, O Reno. Tá pensando o que?! Napoleao já o atravessou triunfante e desfilou pela cidade. O antigo castelo se derreteu em chamas lá pelos idos de 1800 e guaraná com rolha. O que ficou foi a solitária torre. A ponte estaiada refletia roxa em Oberkassel. Desci as rampas passando por grupinhos de estudantes. Soltos no verde, conversavam, faziam fogueira, soltavam fogos, namoravam os primeiros beijos, bebiam os parcos e únicos goles de sua Existência. E deixavam restos de sua presenca com bastante lixo.

Vi o rebanho de ovelhas lá do alto da ponte. Achei uma árvore parecida e encostei a bike. A cidade do outro lado, dividida pela água lentamente em movimento. Os cafés e casamatas na beira se iluminavam e convidavam para a primeira noite de primavera.

Acendi um cigarro e me senti numa cena de Palermo Shooting. No filme o fotógrafo frustrado tem uma conversa filosófica ali naquele mesmo local. Uma névoa leve tampava a cidade do outro lado, mas revelava os animais brancos em maioria. Só que a cena é ficcao e eu vivia a realidade. Ali fiquei pensando em liberdade. E o quao importante é a seguranca de ir, estar e vir numa sociedade.

Um casal passou por mim. Resolvi me mandar. Dei a volta por baixo da outra ponte e subi olhando o único carro da orla. Parecia ter um casal dentro. Ou dois amigos do lado de fora. Achei que fosse a polícia. Desci do outro lado e segui pelo calcadao. Achando que estava sendo seguido. Ou observado. Um casal de bicicletas vinha pelo passeio, mas pensei ser um carro andando ali sem poder.

Voltei pra praca principal, já sem a velhinha do carrinho, e virei na mesma rua. O altar me olhou e piscou de leve. Abaixei a cabeca e segui deslizando pelos paralelepípedos. Na esquina quase trombei com uma mulher parada. Mas nem encostamos. O buxixo dos bares apenas comecava. Alt bier é bom demais.

Atravessei a Heinrich-Heine-Allee e segui pelo Hofgarten. Escuro, na capital da Renânia do Norte. E eu o conheco como a palma da mao. O movimento ali era intenso. Indo e vindo. Mais rápido e menos lento. Me senti numa Autobahn de bikes. Com todos respeitando perfeitamente a sinalizacao. Até eu. Um casal seguia em dois modelos. Um pra uma pessoa e outro com uma carretinha. Era uma Scania na minha frente dando seta pra abastecer. Errou a entrada da praca, mas depois me seguiu.

E ali algo aconteceu. Da escuridao pedalávamos todos em linha na direcao de uma luz intensa.Os galhos desabrigados das árvores eram iluminados por bancos feitos com lâmpadas fluorescentes. E ali, como naves espaciais rumo ao branco infinito, atravessamos pra outra dimensao.

E demos de cara com o Goethe Museum. Segui meu caminho até chegar numa esquina. Ali vi mais uma vez um belo exemplo de respeitar o trânsito, as regras, as leis. Ser um cidadao. A moca parou no sinal. Eu também. Ela seguiu após o verde. Eu fui junto. Ela seguiu pelo passeio pra esperar o sinal do outro cruzamento abrir. Eu simplesmente atravessei a rua, por que nao vinham carros, e segui. Passaram-se segundos e ela me ultrapassou.

Já em casa e de bike guardada, futebol, cerveja e comida me aguardavam. Uma omelete acompanhada de Duvel me fizeram pensar de novo nos privilégios em se poder atravessar o parque da cidade a noite. Local seguro e bem cuidado. Público, sem cercas ou muros. Ali para todos usarem e abusarem. Desde que respeitem as regras e os outros. E nao castelos egoisticamente construídos pra recriar ali dentro o que só se encontra lá fora.

Seriam as ovelhas, soltas admirando o Reno e a cidade, um símbolo da Liberdade?!

3 comments:

O sonho de uma sombra said...

Vovô,

ainda bem que você encontra tempo de meditar e refletir. Eu também, sempre que posso, perambulo pela USP, em dias em que o sol ameno permite.

O filme com o Campino do Toten Hosen é interessante, assisti também há algum tempo. A cena do pastor de ovelhas alemãs é ótima, principalmente pra gente que conhece a cidade.

Só que eu discordo da sua interpretação, de ovelhas como símbolo da liberdade: elas (pelo menos no filme) representavam aquilo de que o fotógrafo tentava escapar: o rebanho que o estilo de vida alemão (e não só o alemão) nos força a fazer parte.

Vovô, tem um livrinho essencial que você precisa ler assim que possível: O Lobo da Estepe (Der Steppenwolf), do Hermann Hesse. O fotógrafo do filme, e (espero) você e eu, somos lobos da estepe, tentando (con)viver entre os cordeiros. Ou, pelo menos, tentamos.

Fora isso, algumas respostas pras suas questões já foram dadas pelo Herbert Marcuse:

http://luiz-eleno.blogspot.com.br/2011/01/num-mundo-feio-nao-pode-existir.html

Parabéns pelo texto, abraços!
paref idellyst

Dimas Souza said...

Meus queridos...

primeiro eu vou ler o lobo da estepe. Depois vou tentar ler isso de novo...

Don Pedro... Esse foi denso! Ainda não compreendi. Vc vai ter que fazer uma apresentacao de 5 slides pra mim na sua proxima vinda à capital eheheh.

Agora vou me retirar pra refletir.

Parabens pelos textos.
Dimas (cambaleando de sono)

Anonymous said...

Pedro Filim,

Ótimo post, sempre me impressionava o dia em que o frio diminuia e tinha sol, estava inaugurada a primavera em Lux! Tudo mudava, as pessoas na rua, era bom demais!
Essa liberdade e segurança é o que mais sentimos falta, isso realmente é um bem incalculável que infelizmente não temos no Brasil.

Saudade de vcs...

Bjo,
Marcos