Düsseldorf (Baco era foda)
Por trinta e um ou trinta e dois anos elas ali conviveram. Condenadas ao oceano verde e limitado. Uma sombra branca grande de um lado e pequena do outro definiam o horizonte. Subir e descer nao tinha mais a menor graca. Lá em baixo, aquele fundo enganoso. Bateram a cabeca tantas vezes nos primeiros meses que aprenderam a se movimentar pelas bordas. Em movimentos circulares. Uma ou outra incauta insistia em vencer o impossível a resistência inabalável daquela abóboda ao contrário. E lá em cima, um funil que nao levava a lugar algum. A nao ser a um ponto escuro que ficava cada vez mais negro com o passar dos anos.
A esperanca residia ali. Vez ou outra o marasmo acabava. Tudo mexia de forma frenética. Nao se sabia por quanto tempo. "Será agora?!", perguntava uma. Três minutos depois, estavam todas novamente na horizontal. Dava pra ver as outras do lado esquerdo ou direito na mesma situacao. Seriam parentes distantes?! Ou mais uma raca condenada ao inferno verde?!
E lá no alto, a esperanca final. Quem sabe nao aguentaria?! Ou o oxigênio, tao raro, se transformaria em vácuo sugando tudo?! Ou até mesmo a forca das leveduras unidas jamais serao vencidas corroeria aquele imenso tampao deixando o ar entrar novamente. Ah, mas perderiam a razao de existir. "E daí", gritava a outra de sandália e saia rodada. "Queremos ganhar o Mundo", sentenciava a outra passando batom.
Passados seis anos, um grande movimento ocorreu. Deixaram finalmente aquele quarto escuro, úmido e desconfortável pra serem exibidas numa prateleira. Era por pouco tempo, mas e daí. "Temos somente quinze minutos de fama. Aproveitem!", berrou a mais assanhada. E foram apenas doze. Arrematada e acomodada numa caixa ainda mais escura que o quarto anterior, suportou sufocantes horas até ser entregue com carinho, reconheceram todas, a um velho alemao. A associacao foi inevitável: " E agora meu Deus, câmara de gás?!", murmuriou lá de baixo, pouco acima da abóboda traicoeira, a molécula de sangiovese.
Nada disso. Carinho, bons tratos e cuidados VIP até o grande dia. Que chegou rapidamente, antes do esperado. O último grande movimento foi a aterrisagem numa caixa de papelao, recheada de jornais e outros papéis. Bem firmes e ainda fortes, sentiram o sacolejar das longas oito horas de viagem. Nao sabiam de onde haviam partido, mas havia uma esperanca comum de estarem chegando no destino final.
Dois dias depois, carregadas por um carrinho com outros pares na mesma situacao, chegaram finalmente ao que parecia ser o fim da linha. Nada de sala escura e úmida. Apenas um grande caixote negro e frio, mas com temperatura constante. Ali viram várias outras semelhantes na mesma situacao. Diferentemente das outras vezes, conseguiam se ver e até a se comunicar por mímicas entre as redomas verdes e marrons. Nao conversaram, mas sentiam que todas estavam ali pelo mesmo motivo.
O frio nao era o maior problema e sim o tédio dos mais de trinta e anos juntas. Nao havia mais assunto. Todas sabiam tudo sobre as outras. Novidades?! A última fora em 2000 nas comemoracoes dos 20 anos. Depois disso já tinha feito de tudo: fumar, beijar, trepar, brigar, fazer amizade, brigar de novo, viajar dos confins da abóboda ao contrário até o Buraco Negro lá no alto... pelo menos umas duzentas vezes por semana. Chega, nao aguentavam mais. Essa situacao tinha que acabar.
Eis que a chegada de uma ragazza italiana muda completamente o destino das incautas sangioveses. Em comemoracao a esse dia, todas parecem pressentir a grande fuga. Mas já sentiram isso antes. Cautelosas, mantém a calma. "Gato escaldado tem medo de água fria", grita lá de baixo a gordona descalca. A música italiana no ar, velas, um aroma de pasta al dente e pomorodo. Tudo parece indicar que finalmente serao libertadas. Salsiccias, pecorinos, azeites escorrendo facilmente entre os dedos e... tomates. "Impossível nao ser hoje", berrou a otimista. Aqueles grandes vasos transparentes ali, parados, aguardando a chegada de algo mágico. Nao era possível que iriam se decepcionar mais uma vez.
De repente, um movimento brusco. A porta se abre. Pelo gargalo, algo quente e macio levanta o mundinho de trinta e dois anos com facilidade. Saca a ferramenta e arranca a tampa vermelha num átimo de segundo. Enfia impiedosamente a agulha em parafuso naquela espécie de madeira macia que pareceu ser tao sólida. No primeiro repuxe, uma sensacao de oxigenacao imediata. O Universo aumentou. A rosca fica imóvel enquanto a mao, sim era uma mao humana, remove parte do grande Buraco Negro. Novo movimento se inicia quando... ar. Oxigênio! Liberdade!
"Mas ainda estamos aqui. Rapaz, e agora?! Tira a gente daqui, pelo Amor de deus!". Calmamente, escorrem para outro recipiente, maior e espacoso. Era como se mudassem do quarto e sala de sempre com vista pra favela do Papagaio para um apartamento de quatro quartos com varanda e a Serra do Curral ao fundo. Mas seria por pouquíssimo tempo. Na verdade, exatas uma hora e meia.
A pasta ficou pronta. Chegou a grande hora! Do quatro quartos deslizaram felizes e contentes pra suíte de luxo, individual. Estava limpída e reluzente esperando fazia tempo. Algumas se despediram. Outras deram gracas ao jesus cristo por ficarem livres umas das outras. Na verdade, o Tempo foi curto pra sentimentalismos.
Na suíte, giraram graciosamente. Sempre na mesma direcao. Sentiram algo sugando o ar. Eram narinas. Uma com grandes pelos a outra nem tanto. Era mais suave. Mas os suspiros e comentários foram unânimes. As sangiovese estavam em plena forma. Uma obra prima da Natureza.
Causaram emocao após o primeiro gole. Tem o poder de fazer chorar. De libertar sentimentos aprisionados por tantos anos que pareciam esquecidos. Fazem também o Sr. Tempo, sim, ele o implacável, às vezes parar. A música se encaixa ao momento. A pasta e o pomororo também. O balanco perfeito foi atingido. Trinta e dois anos se passaram até entao.
Onde você estava em Abril de 1980?!
Obrigado Bacco. Obrigado Antinori. Viva a Toscana. Viva a Itália!
2 comments:
Amei... Dá pra imaginar a emoção delas no fim, sem tempo para sentimentalismos chegando ao tão esperado momento...
Don Pedro!
Você se superou nessa! São 2:20 da manhã, to doido pra ir pra cama, mas não consegui sair do computador!
Aplausos!!!
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