Lisboa (era pra comecar por Paris, mas...)
Um blog nada mais é do que um diário eletronico ou digital. Por diário, entende-se que os posts sejam escritos todos os dias. Quando não seguimos essa regra basica, especialmente em viagens, as laminas da memoria de cada dia vão se sobrepondo umas sobre as outras, os detalhes vao se perdendo junto com o vigor na escrita e somente com a ajuda das fotos conseguimos lembrar da maioria dos fatos.
Tudo isso é uma desculpa esfarrapada pra explicar por que até agora não escrevi sobre a viagem de New York no fim do ano e agora sobre a Pascoa em Paris. Essa ultima eu até comecei, mas a programação por lá foi intensa. Como as laminas ainda estão na superficie, vou me lembrar de quase tudo.
Mas o assunto agora é Lisboa. Escrevi
algumas linhas aqui quando passei dois dias na cidade. Cheguei dia 6 e volto 16 pra Dusseldorf. Vim a trabalho já que temos uma filial purtuguesa. No aeroporto uma coincidencia gigante aconteceu. Indo pegar a mala vi o Feijão, de nome Ricardo, vindo na direção contrária. Ele é o baixista que tocou com o Rodrigo Viana, guitarrista fera e meu amigo de Paris, no brunch de domingo passado ao lado da Campos Elisios, avenida famosa da cidade luz. Se tivesse escrito as estorias francesas antes, respeitando a ordem cronologica, essa explicação seria desnecessaria. Perguntei ao Feijão se ele tinha um clone. Disse que tocaria na quarta 7, vulgo ontem, no Cinema São Jorge, Avenida da Liberdade. Trocamos email e telefone e combinei de ver o show. Feijão ja tocou com Deus e o Mundo no Brasil e ao redor do Planeta musica. Gil, Caetano, Elba, Chico, quase todos os sambistas e mestres da MPB e por ai vai. Ja esta na estrada faz tempo e mora em Paris. Parece o Djavan e pretende viver assim para sempre pois faz o que mais gosta.
Fui pesquisar sobre o São Jorge e o lugar é famoso. O mais tradicional cinema da capital lisboeta foi inaugurado em 1950 com avanços tecnologicos raros para a época, tais como ar condicionado, sistema de aspiração interna (o que é isso?!) e um piano eletrico. Era
a maior sala de cinema do pais naquele tempo.
Na terca 6 não aconteceu nada demais. Foi um dia meio morto até no trabalho. Compasso de espera aguardando as decisões do cliente num projeto especifico. Escolhe mesa, liga wireless, login, senha, instala impressora (sem sucesso). liga pra Ela, pra mae, pro chefe, conhece os colegas purtugas, vai almoçar e se tem a certeza de que Portugal é o Brasil na Europa, volta e bebe aquele cafezinho delicioso, metro, hotel, banho, cama.
Ontem, 7 de Abril, o dia foi diferente. O sol brilha aqui com uma força inexistente na Alemanha. Entre 20 e 25 graus C é a temperatura ideal para o ser humano viver sem dramas. Ja dizia Maria, uma mulher a quem meu avo e xara Pedro ajudou a Vida inteira através da comunidade São Vicente de Paula, sempre disse isso. Deve ter nascido na Europa em Vidas passadas. Ou deveria viver aqui entre Abril e Setembro e depois se mandar pra algum lugar menos frio.
Havia combinado as 20h com o Feijao no Cinema São Jorge. Passei no hotel pra trocar de roupa e saí pelas ruas. Tinha visto um parque no Gugou maps perto do hotel. Chegando lá, descobri que se chama Eduardo VII. Tem ate um clube de mesmo nome nas imediações com quadras de tenis, piscina, academia, etc. Entrei já perguntando se tinham algum convenio com o hotel onde estou hospedado. Disseram que sim, é so pagar 22 EUR. Ta bom, fica pra proxima. Virei um pão duro ultimamente. Levo garrafinhas d'agua do trabalho pra nao beber as carissimas do frigobar.
Do parque caminhei ate a Praça Marquês de Pombal e atendi o telefone. Era Ela. Perguntava como estavam as coisas, que estava em duvidas entre Oslo e Zurich, mas passaria sobre Lisboa no final de semana e pediria ao piloto para descer e me encontrar. E assim será. Ainda bem. Nao aguento mais de saudades.
A Avenida da Liberdade eu já conhecia da outra vez e resolvi ir por outro caminho, numa rua paralela. As semelhancas entre Portugal e o Brasil sao impressionantes. Vi a pastelaria Leblon e entrei. A TV mostrava Manchester United 3x1 Bayern Munchen. Na Alemanha todos torcem contra os bávaros. Talvez pelo fato de o time ser o mais famoso, respeitado e vencedor do pais. Ia pedir um chopp e um salgado, mas escassas eram minhas opções. Vi os ultimos minutos do 1T e deixei o lugar.
Caminhei em direção ao Bairro Alto, mas nao queria subir muito. Vi a Cinemateca Portuguesa no final de uma rua pacata. A iluminação da fachada chamava os cinefilos. Entrei pela porta lateral, passei batido pela recepção e sai num salao redondo com duas escadas. Num mezanino, conversas, som de copos, seria um vernissage?! Subi os 39 degraus, era esse o nome da sala de exposição, e vi varias fotos em P&B em exibição. Carlos Medeiros apresentava à nata da sociedade purtuguesa sua "Insomnia", assim escrito. Havia vinho branco e canapés. Na fração de segundo seguinte, ambos estavam em minhas mãos. Mais alguns instantes em meu estomago, agora nao mais vazio.
Apreciei as fotos, tecnicamente bem feitas, mas um jogo de luz e sombra com modelos num quarto. Gosto de fotos naturais, com luz e sombra idem. Caminhei por outras salas e vi uma pequena mostra de projectores antigos, dos tempos de Don Pedro. Eram chamados de "Lanterna Magica".
Em outra salinha escondida, um projetor mostrava para o escuro e suas cadeiras vazias o filme
The One Man Band de Orson Welles. Sim, ele mesmo. Uma cena noturna interessante acontecia dentre de um carro em movimento. Uma morena vestida de india, alias era uma india mesmo, seduzia um jovem rapazolo. Ambos no banco da frente, ao lado do motorista que tentava segurar o carro na estrada durante um temporal. Um jogo de luz e cores belo e enigmatico acontece e por fim, a india monta em cima do garoto e comeca a cavalga-lo. Os farois dos carros na direção contraria iluminam a cena e o corpo da india em flashes, aumentando a frequencia conforme o ritmo do ato sexual avança. A cena acabou junto com meu vinho.
Devolvi a taça, desci os mesmos 39 degraus, peguei a programação da Cinemateca (sou especialista em acumular papeis, folhetos, folders, brochuras, etc.) e ganhei a rua novamente. Subi um pouco mais e o Bairro Alto me chamando. Resolvi descer, ja que passava das 9. Na ladeira, que lembra muito as cidades historicas mineiras como Diamantina, de tantos carnavais, Ouro Preto e Mariana, havia um boteco. Como sou seduzido imediatamente por locais assim, entrei. Um senhor assistia o jogo numa TV no alto da parede. O dono servia um salgado. Pedi um chopp, depois do vinho nao tem problema, e um salgado. Sentei na cadeira de lata e assisti um pedaco da partida. Era meio triste o lugar. E vazio demais. Paguei e sai. A Liberdade estava logo abaixo, mas antes olhei pra direita e vi essa ruela.

Gosto desses becos misteriosos. Fico pensando na quantidade de pessoas que por ali já passou. No que estavam pensando ou fizeram. Namorados juntos, amantes, esposas e maridos caminhando calmamente, ou brigando e lutando para segurar os filhos inconsequentes e mal educados. As brigas, uma ou outra facada. Os bebados que ali dormiram e foram acordados por cachorros cheirando suas bocas imundas e doces de álcool.
Virei a esquina e no alto da porta dizia Ribadouro Marisqueria e Cervejaria. A filial do paraiso, pensei. O jogo continuava. Enquanto escolhia uma gelada no cardapio, Robben fez 3x2 num golaço pegando de primeira um cruzamento a la Zidane em seus aureos tempos de Real Madrid e fez o gol da classificação germanica. Vi o replay pedindo uma Sagres Bohemia e um sanduba de alcatra. Os lisboetas comem sanduiches com mostarda amarela, mais forte que a do Brasil, mas não tão boa como a de Dusseldorf. Mandei a cerva para o pé - como diz sempre Ramiro Ito, o imperador - paguei, agradeci o atendimento e caminhei ate o São Jorge que ficava logo ao lado.
O relogio marcava 9:45h. Feijão havia dito que tinha um convite pra mim. Subi as escadas e passei pela bilheteria. Algumas pessoas faziam fila pra comprar ingresso. Vi a porta de entrada para o salão do cinema e entrei. Ninguem me pediu nada, não tive culpa. O show já tinha comecado. Achei uma poltrona bem localizada em frente ao palco, a meia altura, e relaxei. Vi que a cantante era Maria de Medeiros, aquela atriz purtuguesa que fez Henry & June, entre outros filmes. Acho que Pulp Fiction tambem. Esse filme é excelente. Henry Miller, o escritor, vive um triangulo amoroso com sua mulher June (Uma Thurman novinha) e Anais Nin, vivida por Maria. Se ainda nao viu, veja.
A rapariga canta bem e em varias linguas. Só faltou russo e mongol. Ingles, portugues, espanhol, frances, italiano, catalão e talvez algum outro dialeto que não reconheci. Feijão era o baixista, um frances pequeno o pianista, um dos bateras era de New Orleans, alma do jazz e o outro de Sampa. Boa musica tocada por quem sabe do riscado. Fiquei curtindo o show de lancamento do CD Peninsulas & Continentes. Quando na minha Vida imaginaria assistir Medeiros em Lisboa?!

Terminado o espetáculo a chusma de gente saiu e ficou esperanto a artista no hall do belo cinema. Uma reporter me perguntou o que eu achei do show. Disse que nem sabia que a atriz tambem cantava, mas que gostei. Ela insistiu e perguntou "Maria atriz ou Maria cantora?!" Falei os dois, mas que deveria voltar a fazer mais filmes... Dali fui até o camarim bater bapo com o Feijão que ja estava de posse de um Jack Daniels. Agradeceu minha visita, disse obrigado pelo convite e rimos da coincidencia. Hoje ele vai tocar em Porto, mas volta a Lisboa dia 14 para outro show dia 15. Mais chopp vem ai.
Voltei ao cinema pra devolver a tulipa que abrigou minha cerva e aproveitei para parabenizar Maria. Disse que nao sabia de suas habilidades vocais em vários idiomas, mas havia apreciado muito. Tiramos uma foto e me mandei. O metrô Avenida me esperava.