Düsseldorf (... saudades...)
Há exatos 365 dias atrás eu estava em Belo Horizonte. Vivia talvez a experiência mais forte da minha Vida. E ao lado do meu irmao, Rato.
Juntos cuidamos para que nosso Pai partisse com o máximo de conforto e o mínimo de sofrimento. Sua alma se libertou do cárcere chamado corpo e flutuou. Na verdade, sublimou. Livrou-se da carcaca que por 69 longos anos a acolheu. Subiu leve e solta. Pronta pra outra missao. Dessa vez mais nobre, talvez.
Por aqui, o que havia de ser feito tinha sido. Cinco filhos criados, esposa fiel e companheira leal, exercício da profissao de engenheiro honrada com competência, honestidade e solidariedade com os colegas que acabaram virando amigos. Na família nao era diferente. O do meio era querido pra cima e pra baixo.
Nao era de muitos amigos. A timidez falava mais alto. Mas a família e a Vida caseira mais ainda. Gostava de ver novelas com o do meio, engracado isso, tomar seu whisky com castanhas na sexta assistindo a um bom filme. Consertava as "coisas" da casa de Lagoa Santa. Tratava todos os funcionários com respeito e justica. E muita solidariedade. Ajudava quando podia. E se nao tinha jeito, arrumava um.
Nao teve Pai, aliás, teve sim mas o perdeu com apenas 6 aninhos. Viu no sogro, meu xará, um substituto a altura. Melhor, impossível.
Falava alemao. Ganhou passagens da Lufthansa num sorteio da empresa. Sempre soube que era sortudo. Morou 3 meses em Rothemburg ob der Tauber, no norte da Bavária. Saia de casa às 5h da matina quando queria fotografar a cidade. A horda de japoneses nao permitia chapas em horários comerciais.
Dependurava os queijos Polenguinho no telhado, pela janela do sótao, e quando a fome apertava na alta madrugada ali estavam eles. Fresquinhos e prontos pra escorregar até o estômago.
Dirigia bem, apesar das várias encostadinhas e arranhoes. Já arrancou um incauto condutor de Kombi ao sofrer uma batida traseira em sua Belina zero. Nos levava até Joaíma numa epopéia que durava entre 12 e 15 horas, dependendo da estrada e do número de paradas. Uma vez, o do meio caiu pra trás num almoco em Governador Valadares. Um corre-corre danado, mas nao foi nada. Só susto.
Nasceu em Campo Belo, filho de caixeiro viajante. De nome Tonico Sapeca. Já fomos a Candeias, logo ao lado, na fazenda da Dona Elza. Era Elza mesmo?! Íamos visitar a Marli, amiga de Janemamae. Me lembro da camionete C10 do Adelino. Era bom andar na carroceria, sentir o vento no rosto.
Ele nunca teve uma camionete, mas gostava dos Fords. Depois dos Fiats. E já teve Fuscas, como quase todo mundo. Aprendeu a dirigir num deles. Andou muito na garupa de Lambrettas no tempo da Turma da Barroca. Era chamado de Professor, pois dava aula de Latim e Matemática. Jogava no gol do Bangu, o time do bairro.
Nunca foi bom de bola, pelo menos nunca fez pose, mas era louco pelo Galo. Alucinado. Desses que nao perdia um jogo, seja pelo rádio ou televisao. Ficava puto na hora, mas depois tava tudo bem. Aguentava a zoacao das marias, mas soltava das suas. Sempre com um humor sutil. Rachava de rir ao ler a tirinha do AFO. Sempre me mostrava, às gargalhadas.
Fazia um cafezinho maravilhoso quase toda tarde, lá pelas 5 horas. Pegava um copo lagoinha, enchia pela metade, cortava uma fatia de Canastra e ia pra janela. Ali, ficava olhando pro nada. Apreciando a vista que conhecia como a palma da mao. Talvez observasse o movimento, apenas. Ou olhasse para o céu, procurando alguém.
Nao sabia cozinhar, mas comia que era uma beleza. Janemamae às vezes o advertia, mas levemente. Ele sempre se defendia dizendo que "mas tá bom demais!" Seu prato preferido?! Macarrao à bolonhesa. Foi ao Bolao no Santa Teresa uma última vez. Comeu feito um lobo afonso, como se referia a quem era glutao. Tinha uma barriguinha saliente, charmosa. Acumulando as latinhas de Skol que bebia aos sábados após dar uma geral na casa de Lagoa Santa. Sexta, whisky. Sábado, cerveja. E nao mais. Tinha hábitos de um japonês.
Às vezes passava da conta, mas era muito engracado. Ficava leve e solto, como todo bêbado. Contava piadas, ria alto, abracava todo mundo. E no final, caia no sono dos justos. Mais do que merecido.
Me ensinou a dirigir. Explicou os mistérios do outro sexo e como fazer pra ter sucesso nessa área. Orientou na escolha da profissao. Ouviu meus problemas e ajudou-me a resolvê-los. Nunca os solucionou pra mim. Até andar de bicicleta foi com ele. No apartamento da Santa Rita Durao. Me lembro como se fosse hoje. Achei que ele ainda tava segurando, mas eu já andava sozinho naquela bicicletinha verde.
Conversava de tudo. Era ponderado. Sabia ouvir. Uma de suas maiores qualidades, senao a maior. Nao entrava em discussao besta. Fingia-se de surdo, mesmo quando comecou a ouvir menos, pra escutar apenas o que lhe interessasse. Isso se chama sabedoria.
De vez em quando, parecia que nao estava na Terra. Era como se tivesse sublimado. A alma pegara um elevador e tava dando umas bandas lá em cima. De repente ouvia-se um "hein". Era a senha da alma retornando. Continuava de onde havia parado.
Apanhei muito dele, merecidamente em 95% das vezes. Os outros 5% coloco na conta das vezes em que nao fui descoberto. Na verdade, acho que merecia mais. Apesar disso, foi o suficiente. Aprendi a licao. As licoes. Continuo aprendendo, mas agora sem ele pra orientar, ponderar, ajudar, conversar, ouvir, alimentar, me fazer sonhar.
Tentei ficar triste umas vinte vezes hoje, mas nao consegui. Ao ler tudo isso, sinto que é impossível. A única coisa que fiz foi assistir a uma missa, em alemao, e agradecer pela sorte única de ter sido seu filho. Precisa mais?!
Guidao, eu te amo!
ATUALIZANDO: Informacoes futebolíticas sobre o passado do Guidao chegaram agora através do Rato, emissário oficial da FIFA. Segundo ele, num fôlego só, "Papai não jogava no gol e sim na zaga, era zagueiro de recurso, orientado pelo gênio Cambão, saia jogando de cabeça erguida e soltava para o meia fazer a ligação com o ataque, em bola alçada na area nunca cabeceava para o meio da área, espanava para a lateral do campo para que não houvesse rebote, fez alguns gols de cabeça em jogadas de corner e ja fez o gol que pelé nunca chegou a fazer, emendando do meio campo e encobrindo o goleiro desavisado!!"
19 comments:
Respekt!
E Saudações
E Parabéns pelo Pai que tiveste!
Lembro dele todos os dias da minha vida!!!! O cara era especial.
Lindo e emocionante texto Cunha........ Guidao faz falta.......
Sao muitas lembrancas de quem teve o privilegio de conviver com ele no dia a dia. Mais uma bela homenagem ao papai nesse dia de muita saudade!!
Valeu Dinho... Linda mensagem...
Saudades boas esta q sinto!!!
Bj no coração!
Pedro,
Vc tem que virar escritor, vamos ficar milhonarios, fico feliz em ter podido compartilhar esse momento intenço com vc, pessoa dotada de brilho !!
Não consegui ficar triste tambem, somente quando estava na casa do marcelinho birinha e ele colocou uma musica do Gonzaguinha " Lindo lago do amor " que me fez lembrar das viajens para Joaima e momentos bons em Lagoa !! Quando percebi que ja tinha um ano se passado imaginei o quanto ele deve ter evoluido no novo plano em que esta !!
Papai não jogava no gol e sim na zaga, era sagueiro de recurso, orientado pelo gênio Cambão, saia jogando de cabeça erguida e soltava para o meia fazer a ligação com o ataque, em bola alçada na area nunca cabeceava para o meio da area, espanava para a lateral do campo para que não houvesse rebote, fez alguns gols de cabeça em jogadas de corner e ja fez o gol que pelé nunca chegou a fazer , emendando do meio campo e encobrindo o goleiro desavisado !!
Certa ocasião foi separar uma briga perto de sua casa e deparou-se com uma bereta, " arma de calibre 22 com duas balas no Tambor" , apontada para sua face, e disse sabiamante para o dono do instrumento belicoso !
_ Não acaba com a sua vida não meu amigo!!
E tirou a arma de sua direção com suas maos habilidosas!!
Grande abraço a todos
beeeeijo do gooordo huooooou !!!
fui !
Texto lindo Pedro, mas eu fico triste sim todos os dias, a minha saudade doi muito e saber que nunca mais vou estar com ele eh duro... Mas hoje e ontem foram dias normais, lembro e sinto a falta dele sempre...
Bjs
Pedrofilhinho,
voce é imposssível, nunca vi ter memória de lembrar das coisas, de sentir as emoções, e guardar tudo direitinho na cabeça. E danado como só, escreve muito bem e saber colocar tudo maravilhosamente bem!!!!! Seu pai lá de cima deve ter rido e adorado tudo isto que escreveu. Você é um sucesso!!!!!. É Pedro o " Multifacetado".
Beijos te amo
Janemamãe
Meu querido Pedrinho,
Você é mesmo muito especial,um menino iluminado!Que beleza de texto e que bom nos lembrar tão bem do Guido nesse dia em que faz 1 ano de sua morte. Que bom ler e lembrar de tantas passagens marcantes da vida do GUIDO.
Obrigada Dinho,nosso dia 14 ficou melhor com suas palavras. Aliás,nos lembramos do Guido com muita alegria e agradecendo à Deus por deixa-lo conosco nesse mundo por 69 anos. Continue escrevendo sempre,viu?
Um beijo carinhoso da Titas.
O pouco tempo que passei com ele foi marcante e intenso. Valeu, TiGuido!
abs,
Miminho
Ele era muito especial mesmo, mas continuo sentindo Ele ao meu lado sempre... lembro do cheirinho dele, tenho vontade e saudades de ficar de maos dadas com ele, deitar no colo e esperar o cafuné, dar o melhor abraço que ja dei em alguem na vida, aquele abraço que envolve, pega todos os espaços... saudades de ve-lo fazer cafe de manha e esperar a agua ferver com as maos cruzadas na frente da barriga, do jeito que ele cortava e lixava as unhas, ve-lo chegar em casa de mochila nas costas assoviando e colocar as chaes na prateleira em cima da Tv, chegar em casa e tirar a roupa, colocar as meias em cima dos sapatos, almoçar e dormir nem que por 15 minutos depois do almoço, caminhar na varanda em LS, igual ao vovo, para fazer o kilo, nadar de crau, com a cabeça de um lado para o outro, ler na cadeira de balanço com os pes apoiados na mesa de centro... sao tantos momentos, atos, açoes vivas dentro da memoria que as saudades só aumentam....
bjs
Pedrinho, impossível eu não me emocionar com palavras tão belas e tão bem escritas por vc, mesmo não tendo conhecido a fundo o seu querido Guido. Parabéns pelo texto e pela incrível maneira de encarar a falta dele: apenas agradecendo e relembrando, todos deveriam ter esta sabedoria.
Chinha.
Valeu Pedro!
Sensacional! Viva o Tio Guido!
Nunca vou esquecer o Galo 5 x 1 Araguari que ele me levou!
Pedrão,
bacana demais o seu texto, mais que uma homenagem, uma linda lembrança da pessoa maravilhosa que foi o Tio Guido.
Esta maravilhosa homenagem que nos fez relembrar bons momentos. E como o Leo falou das suas lembranças, naquele jogo do Galo, quando então arrebentou com o Araguari, eu tambem lembro da ultima grande reunião de familia na sua casa em Lagoa Santa, onde os "causos" contados pelo Tio Guido, dos seus velhos tempos, tiraram muitas gargalhadas de todos em volta... Fernandinha era pequenininha, e tenho uma foto dela no escorregador, no gramado atras da casa. Boas lembranças...
Tambem quero assinar embaixo da declaração do Leo:
VIVA O TIO GUIDO!
Grande abraço,
Cid, Valeria e Fernandinha
Sensacional Pedro!
Grande texto. Tenho certeza que seu pai, assim como o meu, estão em um lugar iluminado onde, um dia, nos encontraremos.
Só me impressiona o tempo. Passa rápido demais!!
Grande abraço.
Lindo Pedrinho, o tio sempre foi especial e continua sendo pois somos eternos. Um grande beijo.
Primo querido,
Que lindo e emocionante! Tenho certeza de que o tio Guido já foi evoluido lá pra cima! É uma das estrelas que mais brilham no céu (digo isso pro Dudu).
Deixou uma saudade imensa e a lembrança de um sorriso que ficará pra sempre gravado na nossa memória! Um ano de saudade...
Vou adicioná-lo ao meu blog e assim estarei sempre atualizada, ok?
Beijos grandes e um abraço carinhoso da prima,
Laurinha
Oi Pedro,
Suas palavras me lembraram muito o papai... Quando você falou do cafezinho com queijo ( uma paixão do papai), do primeiro carro, da barriguinha saliente... Nossa, parecia estar vendo os dois. Não é a toa que eram irmãos. E eram tão irmãos, que seu pai, muitas vezes esteve presente na minha vida como se fosse o meu próprio pai!
Nunca vou me esquecer dele!
E como você disse, também não sinto tristeza, apesar de chorar quando me lembro deles... Não sinto tristeza, pois acredito que eles cumpriram a missão a qual vieram e que estão bem onde quer que estejam. Sinto SAUDADES... Estas serão eternas.
Beijos da prima,
Patrícia.
Ô Pedrão
Beleza de texto. Digno do nosso Guidão.
Para comemorar um ano sem a presença física dêle, iremos nos reunir aqui em casa, e vamos tomar uns uisquinhos como ele gostava. Sem ficar na TIOREGA como diz sua mãe. (será?). Vou aproveitar e fazer um "feijão amigo" para forrar o estômago (ninguém é de ferro).
Beijos para vocês.
Tio Renato
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