Beagá (você está sempre sorrindo pra mim)
Guimarães Rosa dizia que as pessoas não morrem, ficam encantadas.
Você Guidão, criador de uma Vida encantadora não poderia fugir dessa frase.
Esteve presente desde os primeiros instantes da minha Vida. Ajudou Janemamãe, minha vó Zuzu e o vovô xará Pedro a me criarem. Me deu os primeiros banhos, me ensinou a dar os primeiros passos. Me lembro nitidamente de quando aprendi a andar de bicicleta ali na Santa Rita Durão. Aquela magrela verde que você segurava no banco e de repente me soltou e segui sozinho.
Na Pampulha a bagunça descendo a rampa de velotrol com meus irmãos, as árvores que subi pra te olhar lá de cima e ver seu olhar orgulhoso. Quantas viagens fizemos juntos ou que você me proporcionou fazer. Aquela a Porto Seguro quando vi o mar pela primeira vez lá do alto num fim de tarde na praia ainda selvagem. Uma cena inesquecível. Depois ao Rio onde fui ao Corcovado pela primeira vez. E as tantas viagens a Joaíma pra visitar Tia Vânia e os primos e amigos. Você criou uma cama na tampa sobre o porta-malas do carro pra nos dar mais conforto, lembra?! Tampa essa que virou tendência obrigatória nos carros de hoje.
Guidão, você foi me ensinando ao longo da Vida conceitos importantes como respeito, admiração, Amor, liberdade, humildade, simplicidade, honestidade, sinceridade, solidariedade entre tantas outras "dades". É difícil medir tudo isso. Só saberei o valor de todos estes ensinamentos ao longo da minha Vida inteira. Em cada situação boa ou ruim que enfrentar você estará ao meu lado me mostrando exatamente o que fazer, como agir.
Você que quase virou padre frequentando o seminário no Rio de Janeiro na rua Almirante Alexandrino entre os 9 e 15 anos, mas graças a Deus desistiu da idéia. Entrou no Maracanã num desses encontros da Igreja Católica levando uma imagem santa. Você tinha apenas 9 aninhos. E depois voltou pra BH se matriculando no Estadual Central aproveitando da liberdade imensa e inédita que o colégio te dava. Caiu na gandaia, seu desempenho escolar foi lá embaixo, mas você percebeu que o caminho certo não era esse. Foi de um extremo ao outro, balançou como um pêndulo até se equilibrar no meio. Talvez isso explique um pouco por que meu comportamento varia entre extremos, do silêncio ao exagero, de 8 a 8000. Você também era um exagerado incorrigível.
Equilíbrio talvez seja a palavra que melhor defina sua personalidade. Equilíbrio pra criar CINCO filhos tão bem criados. Equilíbrio para começar, manter e cultivar um relacionamento com uma pessoa de personalidade tão diferente da sua como Janemamãe. Equilíbrio por estar sempre presente em casa, mesmo sendo um Engenheiro que normalmente viaja muito. Dia desses no hospital, Guidão, você me contava das propostas de trabalho que recebeu para sair de BH, mas recusou todas por que seria bom só pra você e não pra família inteira.
A maior obra que um Homem pode criar é sua família, seus descendentes. É a continuação da sua própria Vida, seus valores, suas crenças e fisicamente a extensão do seu corpo. Somos uma família unida e feliz. Estável, equilibrada, sensata e sábia. Como você, Guidão!
Sta. Rita Durão 1 e 2, Pampulha, Nunes Vieira, Pampulha de novo e rua da Bahia. E passando por Lagoa Santa, sempre. Estes foram nossos lares ao longo dos 36 anos e 10 meses em que tive o privilégio de conviver com você. Ser filho de um mestre é uma dádiva!
Decidi ser Engenheiro Mecânico pra continuar seus passos. Fiz o Doutorado que você tanto me incentivou por que sonhava em morar na Europa. Hoje, por coincidência ou não, vivo na Alemanha trabalhando para e com alemães. Falo o idioma que via e ouvia você falar pensando ser algo impossível de aprender. Te achava e continuo achando um cara genial. Sigo seus passos entre Dusseldorf e Essen a cada manhã quando vou trabalhar. Você, Guidão, que trabalhou para e com os alemães na maior parte da sua carreira. Culturas e idiomas diferentes, maneiras de pensar ou atacar um problema completamente opostas, mas a sabedoria e a diplomacia em lidar com as situações é que fizeram e continuam fazendo a diferença.
Tive o privilégio este ano de estar aqui com você em quatro oportunidades. Nos vimos em Abril durante três semanas. Você me repreendendo, mas ao mesmo tempo rindo por dentro, quando me via chegar do Mercado Central num sábado a tarde chumbado, como você dizia. Depois em Agosto passamos seu aniversário e do Lucas e o dia dos Pais juntos. Vim rapidamente em Setembro, só por uma noite e uma manhã, mas o suficiente pra matar a saudade. Guidão, quando eu ia viajar cedinho você acordava às 4 e meia da manhã só pra fazer café pra mim me acompanhando ali, naqueles momentos silenciosos no escuro da madrugada de uma manhã que ainda demoraria a nascer.
E quando cheguei no dia 30 de Outubro te vi diferente, magro como nunca, meio abalado. Fiquei preocupado, mas achei que você sairia dessa de novo, como sempre saiu. Já dava sinais de que a doença traiçoeira tinha te pegado de vez, mas recusei-me a acreditar. Fui ao Rio dia 04 de Novembro quando você foi internado. Na praia do Leme conversava com Daniel, o Rato, mais um de seus filhos queridos. Eu dizia que você não merecia mais sofrer, que tinha um orgulho imenso de ser seu filho e que sabia do orgulho que você sentia e sente por mim. Já estávamos antevendo o que aconteceria.
Dos dez dias no hospital, dormimos seis noites juntos. Depois de tanto cuidar de mim, o mínimo que eu poderia fazer era retribuir a altura. Vimos TV, jogos do Galo, conversamos, te dei água e outras bebidas, mingau, iogurte e vi você recebendo uma incontável quantidade de remédios: Plasil, Dramin, Nauseadron, Dipirona, Dimorf, nomes que ficarão na minha cabeça ainda um bom tempo. Te dei banho uma manhã. Foi um dos melhores momentos desses 10 dias. Temperei a água quentinha como você gostava, lavei sua cabeça e seu corpo já cansado e diferente. Esfreguei cada canto da sua pele, como você tantas vezes fez em mim. Depois fiz sua barba, com sabão mesmo. Você ficou lindo, Guidão!
Fiz também massagens nas suas costas com a pomada milagrosa do Vovô Pedro e também nos seus pés. Fiquei pensando na infinidade de lugares por onde você andou e pisou, em cada passo que deu pra chegar aonde chegou. Olhei para suas mãos, fortes, lúcidas, hábeis, inteligentes. Nos cálculos que fez como engenheiro, nas palavras que escreveu ou digitou, nos gestos, nas infinitas vezes em que lavou a louça da cozinha, nos consertos das casas, principalmente em Lagoa, nos quilos e malas que carregou, e até nas palmadas que me deu merecidamente.
Na quarta você me deu um susto com aquela dor lancinante na coluna que insistia em ficar. Nem as massagens com a pomada Vovô Pedro adiantaram, mas conseguimos superá-la. Você começou a tremer em seguida morrendo de frio. Estabilizou-se após ser medicado, mas foi assustador.
Na quinta passamos a noite mais tranquila de todas. Você dormiu feito um justo de 20h as 6h do dia seguinte e nem acordava pra receber os remédios na veia. Lembra dos conselhos sobre amizade e liberdade que você deu ao Marcão e a mim?! Jamais esqueceremos.
Na última sexta de sua Vida, o último dia útil da sua carreira, você comentou uma proposta técnica do trabalho orientando o pessoal, como sempre fez. Realmente, Guidão, você cumpriu o prometido: trabalhar até o último dia que conseguisse!
No sábado à noite escutamos juntos o jogo do Galo contra o Flamengo, nosso arqui-rival. Pedi aos deuses do futebol uma última vitória pra você. A cada gol você me perguntava quem tinha feito e vibrava em seguida. Obina, Renan Oliveira, Tardelli e Renan de novo. Goleamos o urubu por 4x1 e as marias perderam roubado no mesmo dia para o Corinthians. Na hora do penalty no Gordo, que me pareceu inexistente, você disse "melhor ainda!" com um sorriso no rosto. Missão cumprida Guidão, mais uma.
Janemamãe me pediu pra ficar naquela noite novamente com você ajudando o Rato. E quando ele chegou pra dormir trazendo um colchonete você perguntou ironicamente se faríamos ali um acampamento. O Rato chegou com a camisa do Galo e te mostrou os gols na internet. Você vibrou mais uma vez. Acho que se sentiu confortável ao ver dois de seus filhos ali com você.
As cenas seguintes durante a noite foram como num teatro. Tudo parecia estar muito bem ensaiado. A cada desconforto que você sentia Guidão, levantávamos prontamente pra te ajudar a sair da cama e se sentar na cadeira. Quinze minutos depois você queria voltar da cadeira pra cama e lá estávamos pra te auxiliar. A verdade Guidão, é que você não tinha mais lugar, não encontrava mais uma posição neste Mundo. Sua respiração ofegante, auxiliada pelo oxigênio, já mostrava que sua alma precisava respirar outros ares. Às duas da manhã você perguntou que horas eram. Respondi e você falou que tava muito cedo. Depois entendi que era cedo demais pra partir. Daria muito trabalho pra todos se fosse naquela hora. Me disse que tinha que ir ao Detran retificar uns documentos. Respondi que era domingo e no dia seguinte feriado. Só assim pra você parar de se preocupar.
Seu intestino já havia parado alguns dias atrás. Depois foi o rim dois dias antes. Quando sua glicemia baixou às 3h da matina e você ganhou uma dose cavalar de glicose comecei a pensar no fígado que estava se desligando. O Dr. Alexandre, na verdade um anjo que veio te buscar, explicava o quadro clínico com clareza e sinceridade, mas sempre escolhendo as palavras certas com uma sensibilidade impressionante. Parecia parte da família. Desconheço o quanto ele sabe de medicina e oncologia, mas de relações humanas, carinho e psicologia é um mestre. Menino novo que vai longe, tenho certeza absoluta.
Às 5h da manhã, finalmente, você encontrou uma posição e dormiu um pouco. Acordou e pediu pra se sentar na cadeira. Quis ir ao banheiro pela última vez e foi caminhando amparado pelo Rato. Se sentou, disse que queria trocar a fralda e o short do pijama. Levantou-se e voltou caminhando pra cama. Subiu com dificuldades, deitou-se ajeitando o calção do pijama e encontrou uma posição confortável rapidamente. Te perguntei se tava tudo bem, se sentia alguma dor. Você disse que não, não sentia nada. Então peguei um copinho da água espiritual que tia Lucy trouxe na sexta e te dei. Falei que te faria bem se bebesse. Foi a última coisa que você bebeu Guidão.
Depois disso seus olhos miraram pra cima. Ficaram arregalados, olhando alguma coisa no alto. Talvez minha avó Ermíla já te esperando. Talvez nos novos ares que você queria respirar. Ficou nessa espécie de transe por uns 15 minutos. Aos poucos sua luz foi diminuindo, a bateria acabando. Não reagia mais às nossas perguntas. Dr. Alexandre chegou e ainda tentou uma nova dose de glicose, mas foi em vão. Vi seu último suspiro e percebi que sua barriga já não subia nem descia mais. O médico conferiu os sinais vitais. Olhei para o relógio: 6 e 50 do dia 14 de Novembro de 2010, domingo. O dia seguinte era um feriado. Até com isso você se preocupou.
Guidão, te agradeço eternamente por ter dado ao Rato e a mim a honra de estar com você nos momentos finais.
No velório e enterro confirmei o que já sabia: que você era uma espécie de unanimidade, mas que dessa vez não tinha nada de burra, pelo contrário. Achava que você não tinha amigos, mas vários da turma da Barroca de 40 anos atrás apareceram pra te cumprimentar. Sabia do seu apelido de Professor, criado após seu retorno triunfante do seminário quando começou a ensinar Matemática, Latim e Português pra turma. Me disseram também que era chamado de Gambá por que comia tudo e muito. Como a tigela de arroz doce que vovó fez num sábado a noite como sobremesa para o almoço de domingo e você, chegando mais cedo em casa, comeu metade.
Pessoas de todas as partes de todos os lados da família, dos vários lugares onde você trabalhou, mas também onde Janemamãe, Helena, eu, Lucas, Marcos e Daniel trabalhamos. Amigos de todos nós. Vizinhos da rua da Bahia, do Amendoeiras, coroas de flores dos amigos ausentes que não puderam vir. Guidão, por um momento pensei que você fosse um político famoso ou artista de cinema. Até o veterinário do Led, nosso cachorro de Lagoa Santa, apareceu. E o Agnaldo, caseiro da casa?! Era como outro filho dizendo que ninguém nessa Vida o havia ajudado tanto quanto você!
A frase que mais me marcou foi a do Bernardinho que chegou me abraçando e dizendo "Pedrinho, parabéns pelo Pai que você teve!"
Me senti muito mais aliviado do que triste durante a cerimônia. Olhava para o alto e te via sorrindo pra mim, como se estivesse dizendo: "Pedrão, você fez tudo certo.". Estive leve e sereno o tempo todo por que sabia das dores que sumiram, do alívio que você sentia, da Paz em que seu coração se encontrava.
A salva de palmas na saída para o cemitério e depois quando a lápide foi fechando foram mais do que justas, merecidas, maravilhosas. E começou a cair uma garoa fina exatamente no instante seguinte à colocação da pedra. Agora você realizou seu desejo de ficar para sempre ao lado do Vovô Pedro.
Guidão, sempre te disse isso e não tenho a menor dúvida de que você é o MELHOR PAI DO MUNDO!
6 comments:
Sempre vou me lembrar de seu pai me dizendo do enorme orgulho que sentia por você, principalmente por sua simplicidade e sua humildade. Te amo muito e também sinto muito orgulho pelo marido que é e pelo filho que foi para ele. Tenho certeza que um dia você será um grande pai para nossos filhos!
Eh meu caro Pedrito creio que todos temos suas funções aqui, e com certeza, posso dizer, até por conhecimento de causa, que uma das mais importantes é SER PAI e isto, sei que Seu GUIDÃO tirou de letra. É sua obrigação continuar este legado, mas para você, vai ser moleza! A única coisa que te peço meu irmão, não me deixe de fora dos seus momentos, já passei por esta dor e quero estar ao seu lado no que for preciso.
Quando tiver um tempinho, veja o que Deus tem para você em Josué capítulo 1 (não deixe de ler).
Beijo no seu coração, da Juju e seus familiares.
Christiano (The Dark Side of The Moon) e família.
e eu fico aqui pensando nesse filhotinho que carrego dentro de mim hoje. no quão grande eu quero que ele seja, bem assim, como vc.
tu é lindo, truta!
love.
manu
Monstro...
Nessas horas não temos muitas palavras.
Desejo a vc e sua familia muita força !!
Apesar da distancia e do tempo, sei q somos daquele tipo de amigos, que ao reencontrarmos o tempo não passa, só fica de pause, e quando volta, isto é, reencotra, é como nada perdemos pois a nossa raiz, que fora construida é forte.
um abraço do amigo BUTINNA
Pedrao,
the information about the death of your Father shocked us both profoundly, it is hard to reconcile oneself with such a situation! Please accept our deepest condolences. Remember that death leaves a heartache no one can heal but love leaves a memory no one can steal and as Emily Dickinson wrote: Uunable are the loved to die. For love is immortality.
Marcin & Rosario
Pedrinho,
que linda mensagem você escreveu para o seu querido pai. Obrigada por se preocupar em recuperar um pouquinho dos últimos dias do Alex via e-mail. Perdemos, nós daqui e vocês daí, grandes seres, que iluminaram verdadeiramente as nossas vidas, enriqueceram a nossa alma e ensinaram em trinta em poucos anos o que muitos nunca conseguiram fazê-lo em tempo muito maior. Certamente cumpriram sua missão com grandeza e amor.
Que Deus ilumine nossa caminhada, agora um pouquinho mais vazia, porém recheada das lições que deixaram.
Beijos,
Mirna.
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