Düsseldorf (ficou grande demais...)
Tirei livre a tarde de segunda para executar a Missão München. Com o chefe sabendo e achando graça, a mulher dando apoio e Amor e o dono assinando embaixo, só não iria se fosse belga. Os belgas sofrem com as piadas dos holandeses e alemães assim como os portugueses com a nossa ironia.
Mochila nas costas, saio do trabalho, atravesso o parque, pulo no U-bahn, chego na estação central, vejo o ICE me esperando, caminho ate o vagão 21, entro e acho o assento 65 janela, mas com uma coluna imensa tampando a visão, troco de lugar, me acomodo e aguardo os vagões saírem da inércia.
Planejei trabalhar no trem lendo sobre um futuro projeto, procedimentos de gerenciamento e outros assuntos igualmente interessantes e fantásticos. Trem vazio, sem maiores emoções, saindo de Essen e passando por Duisburg, Düsseldorf onde moro, Köln (Colônia para os incautos), Frankfurt, Aschafenburg (não sei por que o ICE para nessa vila), Würzburg, Nürnberg e finalmente München ou Munique pra quem nunca teve o privilegio de visitar a capital da Bavária. Ligo pra Juju algumas vezes.
Na chegada logo me veio na lembrança a Oktoberfest. A Hbf (estação central) sempre lotada de turistas, bêbados, fantasiados, perdidos, ressaqueados, tristes, felizes, jurando nunca mais voltar, contando as semanas pra próxima edição. No caminho para o metro, olhei pra direita e vi o estacionamento de onde duas semanas atrás havíamos partido de volta pra casa depois de comparecer pela quinta vez nessa festa medieval e brutal para o fígado que os bávaros fazem todo ano em Outubro.
Comprei o ticket do U5 e esperei na plataforma. Entrei no vagão, sentei, tirei meu livro Conversa na Catedral, do Vargas Llosa, e fui lendo como se morasse em Munich desde sempre. Após cinco anos de Europa, as novidades não são tantas. É tudo muito parecido, em todos os países. Mais do mesmo, sempre. É confortável, mas ao mesmo tempo um saco. Era hora do rush, mas sem movimento algum que o caracterizasse. Os europeus gostam de ler, em particular os alemães. São donos do maior mercado e da maior feira editorial do mundo. Todo mundo lê em todos os lugares. Um silêncio absoluto entrecortado apenas pelo condutor anunciando, em bayerisch impossível de entender, as paradas e avisando que as portas se fecham após o sinal.
Desço na Quiddestraße pra pegar o ônibus 192 ate a Feldbergstraße 2 onde Gerd repousava desde a partida do dom Gomes dia 9 de Outubro. Desci do balaio filmando o momento. Escurecia e fazia um frio de rachar. Vi a placa da rua e uma casa com uma van branca na porta. Pensei: deve ser aqui perto o numero 2...
- Don Peter, é você?!
- Fala Gerd, claro que sou eu.

- Você vai me tirar daqui?! Não agüento mais olhar pra essas bicicletas velhas.
- E por isso que vim aqui. Vou entrar na casa, tomar um banho e caímos no cerrado, beleza?!
- Graças a Deus. Esse povo aqui é muito mercenário.
- E no mais, sofreu com a partida do Flavio?!
- Claro. Ele é demais. Meio doido também, você sabe. E volúvel. Vira e mexe se apaixona, mas sei como mantê-lo por perto.
- Acho que você saberá sim, mas a concorrência é grande.
- Não me preocupo com isso, só quero sair desse freezer ao ar livre.
- Isso é fácil.
Toquei a campainha da casa da Fátima, que me alugou os apartamentos pra Oktoberfest e quebrou o galho do dom Gomes e do Gerd durante esses 10 dias. Havia combinado de tomar um banho. O marido holandês abriu a porta. Falei “Wie geht es Ihnen”, sem resposta. Perguntou se viria buscar o carro, respondi que sim e ele “Gott sei Dank!” (Graças a Deus). Otário, pensei. Vou cagar no seu banheiro inteiro. Como sou educado, limitei-me ao meu combinado banho. Saindo do banheiro, Jan, o holandês babaca, me perguntou quando eu queria ir embora. Respondi, agora. Ele tirou sua van da frente da garagem enquanto eu entrava no Gerd. Conferi tudo, virei a chavinha de gasolina pra posição A (auf), puxei o afogador, dei a partida e... pegou de primeira, claro. Enquanto o holandês se afogava na nuvem azul, ajeitei os espelhos, arredei pra trás o banco colado no volante pra acomodar o pequeno polegar Gomes, puxei o cinto, engatei a ré e vamo simbora Gerd. Dei tchau pro holandês travestido de alemão e rua.
O mapinha indicava para seguir a avenida em frente ate o fim em direção a München Ostbahnhof. No caminho os bávaros olhavam curiosos pelo carrinho. Senti Gerd muito mais macio do que em Leipzig quando o busquei, sem folgas e trancos na direção. A oficina do Herr Drösser fez muito bem a sua saúde. Chegamos sem errar no terminal da DBahn chamado Autozug (auto-trem). No check-in o cara da DBahn disse nunca ter visto um Trabi por aquelas bandas. Dois trens partiriam naquela noite, um para Düsseldorf, outro para Hamburg. Eram vários vagões-cegonha gigantescos com dois andares. Capacidade para uns 80 carros acho eu. Ameacei entrar e Gerd morreu...
- O que foi?!
- Nunca andei de trem.
- E daí, tem sempre a primeira vez.
- É perigoso?!
- Claro que não. Deixa de ser fresco e entra logo. Você vai gostar.
- Capitalismo tem lá suas vantagens, né.
- Ah, tá começando a gostar. Vai ser frio, mas você agüenta fácil.
- Então vamos. Gira logo essa chave.

Entramos pela traseira da grande ave no segundo andar, de camarote segundo Gerd me contaria já em Düsseldorf (como aprendem rápido). O frio continuava trincando os ossos e me restavam quase duas horas até a partida. Tiro fotos de Gerd. Boa viagem. Pra você também. Procuro algo pra comer e nada. Só as infinitas variedades de pães alemães. Queria um salsichão. Saio da estação pelas ruas procurando um bar ou café e nada. Que lugar mais fracassado. Uma menina pega sua bike, tira o cadeado e se manda no frio escuro da noite bávara. Só me resta o Burger King.

Peço um Big King Menu com coca e mayo (alemão chama maionese de mayo, que meigos), sento numa mesa e começo a comer. Observo uma mãe com seus dois filhos e um casal de idosos. O velho é a cara do Doc de “De Volta para o Futuro”. O cabelo branco e esvoaçante e a cara de louco estão ali. A velha come com a mente em seu mundo. O marido da mãe dos meninos chega e começa a comer. Pego alguns papéis e vou anotando fatos do dia, seguindo recomendação de famoso escritor. Doc tem sono. Levanta a cabeça olhando pro teto, apoiando-se no próprio pescoço para trás, e cai no sonho. Penso: poderia ter comprado um sanduba maior. Os meninos terminam o lanche. Vou ficar com fome a noite, que merda. Vejo um clip do Muse. Duas velhinhas amigas, irmãs ou gêmeas se sentam ao meu lado. O pai dos meninos também acompanha o clip do Muse. Vai dar tempo de passar na livraria?! O olho é maior que a barriga, sempre. E no supermercado?! Satisfeito, levanto, deixo minha bandeja no local apropriado, não sei antes deixar cair, junto o lixo do chão, pego minhas coisas e me mando pra livraria da estação. Folheio algumas revistas, compro uma edição comemorativa de 100 anos da Audi com direito a poster e DVD, em alemão é claro, reparo na repercussão negativa da guerra civil carioca na imprensa mundial, passo no supermercado pra comprar o biscoito igual ao do adesivo no vidro traseiro do Gerd só que com cobertura de chocolate meio amargo, e caminho para a plataforma.

Vagão 265, Platz 103. Almofada, protetor auricular e água são a garantia de uma noite tranqüila. Entro na cabine e dou de cara com uma família. Pai alemão que trabalha na indústria química fabricando produtos para airbags, mas também para plataformas petrolíferas. Falo do Brasil, ele da Petrobrás. A mãe irlandesa conversa em inglês com suas duas filhinhas lindas e loiras. Devem ter sete e cinco anos, imagino eu. Não sou bom de contas para essas idades. Conto onde moro, eles também são de lá. Os quatro olhinhos azuis me olham curiosos, envergonhados, felizes, sinceros. São cinco camas e digo logo para escolherem os lugares que quiserem. Decidem que a do terceiro andar seria a minha. Ótimo, penso. E a escada pra subir ate lá? Perguntam o que fui fazer em Munich. Eu e o alemão procuramos pela escada, e nada. Conto do Gerd, eles caem na risada me achando simpático ou sendo apenas educados. Subo, arrumo minha cama, me acomodo, pego o livro. Tem lençol, coberta e travesseiro. Amo a Alemanha. A mais velha olha pra mim e diz ter encontrado uma cabine vazia lá na frente. Dou um sorriso e ela repete a frase indicando querer ficar a sós com sua família. Penso em mudar, mas, e se um gordo escroto e fedido tiver a mesma idéia?! E começar a roncar e peidar durante a noite?! Ela acha a escada debaixo da cama. O medo do desconhecido me ajudou. Coloca-a na posição ajudada pela mais nova e depois se deitam. Decido ficar. Mando um SMS de boa noite pra Juju. Quieto tentando não incomodar, apenas lendo meu livro e escutando a interação familiar em alemão e inglês. Quando será minha vez?!
O som dos trilhos me faz lembrar o filme
Stalker do Tarkovsky. Vai só aumentando e martelando a sua mente, mesmo com o protetor. Uma sensação de descarrilamento me invade o pensamento. E se os vagões-cegonha, mais pesados, saírem de traseira numa curva levando toda a composição?! Durmo tranqüilo em seguida. O café da manhã seria as cinco da matina. O pai alemão recusou, ainda bem. Ele diz que já estamos em Köln. Passou muito rápido. Como estará Gerd?! Nunca andou por essas bandas.
Acordamos. Olho pra baixo e quatro olhinhos azuis devolvem na direção contrária. Pergunta em alemão onde moro. Respondo e quero saber onde ela vive. Diz, sorri e sai da cabine. Junto minhas coisas e saio no frio. Sou o último do trem. Alemão é um bicho meio impaciente. Quer ser produtivo o tempo todo. Encontro eles esperando no relento pela liberação dos carros. Idiotas. Ou então gostam de frio. São seis e meia, ainda escuro. Fico impaciente, contagiado pelos germânicos. Percebo que viajamos acompanhados de dois ilustres passageiros, um italiano e outro teutônico. Vieram de segunda classe ou andar térreo, me explicou Gerd. Abrem os portões e a turma avança por entre os carros nos dois andares. As mulheres e restante das famílias ficam aguardando pelos ansiosos companheiros. Caminhando entre o corrimão de aço e desviando dos retrovisores, chego no Gerd.
- Porra, me tira daqui.
- Hahaha, por quê?! Não gostou?!
- Quem vai rir sou eu quando tentar me ligar. Tá tudo congelado, brrrrr.
- Nada que um afogador não resolva.
- Veremos. Anda logo.
Guardo a mochila no porta-malas, entro, puxo o cinto, ligo o rádio e espero. Os carros da frente vão sendo liberados aos poucos. A cegonha chacoalha como se tivesse parindo. Abro a torneirinha. Acendo os faróis. Um funcionário tira as travas das rodas e me manda seguir. Puxo o afogador e dou a partida. Nada. Porra Gerd, não queria ir embora?! De novo e ele liga. Engasga pra sair, mas vai. Na saída ganha um tchauzinho da mãe e das duas princesinhas. Viramos a curva ainda no pátio de descarregamento e uma senhora olha e sorri.
Gerd vira celebridade instantânea por onde passa.
No ainda escuro caminho de casa, nada de especial. Acho uma vaga na porta. Uma menina em seu Toyota me olha curiosa. Tiro minhas coisas, fecho a porta e caminho pra porta de casa.
- Quero conhecer seu castelo.
- O que?! Como assim?!
- Me leva pra Essen com você hoje.
- Como sabe que vou pra lá?
- Sei tudo sobre você.
- Não duvido. Tudo bem. Espere meia hora.
- Bis bald.
Entro em casa. Largo tudo na sala, tiro a roupa e pulo na cama pra me esquentar na Juju. Pobre Gerd...
Tomo um banho, troco de roupa, pego minhas coisas e volto pro carrinho. Já é dia claro. Pego a Autobahn 42 no já conhecido ritmo noventaporhora. Os apressados alemães não perdem tempo olhando para Gerd. Só querem chegar logo no trabalho, ser produtivos, não perder um segundo sequer. Quase chegando em Essen, Gerd engasga e morre. Viro a chavinha para posição R de reserva, jogo terceira pra pegar no tranco, mudo pra quarta e seguimos em velocidade de cruzeiro. Um belo sol nasce iluminando o vale do Ruhr. Acho uma rua com estacionamento livre e paro. Pergunto a outro motorista se ali é de graça mesmo. Diz que sim e tiro minhas coisas. Vou saindo quando escuto:
- E o castelo?!
- Mais tarde. Na hora do almoço te levo lá.
- Tudo bem. Quero conhecer BeNeLux também. Soube que os castelos por lá são igualmente magníficos.
- Te levo na Villa Hügel primeiro, aqui ao lado. Era da família Krüpp. Essen foi a capital do aço alemão.
- Quero conhecer a Ligne Maginot.
- Meu irmão mora em Luxemburgo, fica perto. Onde aprendeu essas coisas?!
- Livros contrabandeados, clandestinidade. Você não sabe o que é isso.
- Estou atrasado.
- Levarei chocolates belgas pro Flavio.
- Sim, claro. São os melhores.
- E a tal erva?!
- Que erva?!
- Já falamos de Be e Lux. Falta Ne.
- Ah! Pirou?! Ou quer pirar?!
- Os dois.
- Lembre-se do protetor solar.
- Tá no porta-malas.
- Ótimo. Depois a gente combina BeNeLux.
- Faço questão de ir. Senão hoje você volta a pé pra casa.
- Isso é uma ameaça?!
- Não, uma negociação.
- Combinado então.
- Bom trabalho.
- Obrigado.