A Europa tem dessas coisas. Voltando de reunioes ocorridas em Saarland, sudoeste da Alemanha, passamos pelo Mosel. E lembramos de um excelente produtor local de Riesling, Markus Molitor. Olhamos no GPS e estaríamos lá cinco pras cinco da tarde. Ligamos pra saber até quando ficaria aberto: 17h na pinta. "A senhora pode ficar mais uns dez minutinhos aberta pra gente comprar algumas garrafas?!". Diante da resposta positiva, desviamos o rumo com um sorriso maroto no canto da boca.
Ao chegar a Frau nos pergunta se queremos provar os vinhos. Um olha pra cara do outro, um sou eu e o outro o Luis, meu chefe, e balancamos a cabeca afirmativamente. Como a sede principal da vinícula Molitor está em reformas, atendem agora provisoriamente numa outra casa. Que vem a ser a casa da sogra da citada Frau, uma funcionária da empresa e nao membro da família Molitor. Nao importa.

Frau chega e nos mostra as cinco primeiras garrafas. O primeiro justamente um pinot noir alemao, legítimo e sem sotaque. Pra surpresa do Luis, que só esperava Rieslings, o vinho desce como um veludo. Ariff Jamal, que era realmente indiano, também sorri após o primeiro gole. Mas nos conta que é uma uva complexa, precisa de tempo no copo pra respirar. Nos aconselha a deixá-lo de lado por um tempo. E que o melhor gole é sempre o último.
As garrafas de nr. 6 a 10 nos sao apresentadas. Cada uma com sua particularidade, ano de producao, vinhedo, tempo de colheita da uva e característica diferentes. Termino um 2010 Graacher Domprobst, apenas pra citar o nome do vinho fingindo que sou entendido - na verdade, acabo de olhar na lista de precos - e leio a descricao de sabores e aromas de um outro vinho da casa. Comento com a Frau que das duas uma: ou ainda nao desenvolvi sensibilidade suficiente pra perceber os odores e sabores descritos ou tudo aquilo é pura cascata de marqueteiro. Ela reconhece ser mesmo um exagero. O texto fala de aromas de nectarina, damasco, pêra e pêssego branco da regiao. Pra mim só existia o amarelinho.
Jamal diz que leva tempo pra perceber tudo isso, mas também acha um exagero. Diz que cada um sente e percebe cheiros e sabores de formas diferentes. Um vinho fabuloso pra uma pessoa pode nao ser tao apreciado por outra.
Mas acho meio viagem. Por exemplo, a opiniao do distinto enólogo após provar um champagne Pierre Gimonnet:
Ao mesmo tempo muito rico e delicadamente cítrico, desenvolve um fundo sutil de notas florais e minerais, eis um Champagne magnífico. Na boca é amplo, cremoso e aerado, este vinho de exceção deixa ao degustador uma grande lembrança enófila.
Muito vago e subjetivo. "Delicadamente cítrico", mais para limao, laranja, lima ou abacaxi?! "notas florais e mineirais", quais deles?! Margarida, orquídea, dama-da-noite, lírio ou papoula pra te enlouquecer?! E os minerais?! Sulfatos, carbonatos, óxidos ou fosfatos?! Cremoso pra mim é requeijao ou o próprio creme de leite que a Nestlé nao vende na Europa. Mas, vamos em frente.
Frau vai empolgando e enfiando um vinho atrás do outro na gente. Lá pelas tantas, Jamal remete a sua infância. Nos conta que vem da Caxemira e fora forçado a aprender os idiomas dos dois lados, Índia e Paquistao. Disse que certos vinhos sao tao inesquecíveis como a primeira palmada que ganhou do pai. Se mudou pra Délhi e ali, além do inglês, aprendeu os dialetos da regiao. Depois veio pra Europa e aprender francês e alemao foi moleza.
Nessa brincadeira Jamal comeca a explicar que os processos de fabricacao no Molitor sao todos manuais devido aos terrenos íngrimes ao redor do Mosel. Máquina nao entra, só a mao humana. E que o processo de fermentaçao, que nos americanos é todo controlado por computador nos tanques de inox brilhantes do Napa Valley, ali sao regidos pela Natureza. O nome em alemao de um desses processos é simples: "Thermokontroliertevergärungsabwicklung". Como 2 + 2 = 4. Isso nada mais é do que o processo de fermentacao controlado por temperatura. Sao tantos os parâmetros regendo os micro-climas dessas regioes e seus impactos nas safras que brinco dizendo ser como um malabarista com 12 bolas no ar. Se uma cair o vinho nao sai mais perfeito.
Garrafas nr. 11 a 15 na mesa da empolgada Frau a postos. Um tal Trockenbeerenauslese, ou TBA para os íntimos, nos é garbosamente mostrado. Aprendemos depois que num mesmo cacho das videiras centenárias de Herr Molitor, o Auslese é a uva madura com bastante suco, a Spätlese (spät = tarde) é ela bem mais madura e quase apodrecendo com um teor de acúcar maior, e a TBA é a uva seca, quase como uma uva passa com pouco suco, mas muito mais acúcar que as outras. Por isso a producao da TBA é bem menor, mais rara e, evidentemente, mais cara. O vinho que sai dela é um néctar dos deuses, fabuloso.
E pra fechar Frau traz um Eiswein, ou vinho gelo em traducao literal. Sao as uvas que nao sao colhidas na primavera e congelam no inverno mantendo um teor de acúcar nas alturas. Uma combinacao de temperatura e duracao do inverno tem que acontecer pra se conseguir colher o Eiswein. E nao é todo ano que isso acontece. Por isso as garrafas sao mais limitadas ainda que o TBA. Tem um de 1998 custando € 1.190,60. É mole?!
Bem, Jamal nos deu várias outras dicas, comparou vinhos a mulheres dancando com ventos esvoacantes balancando seus vestidos vermelhos nas estepes da Caxemira. Mesmo com 20 anos de Borgonha o álcool ainda faz um bom efeito nele. Nos convidou pra visitar o stand da família Molitor na ProWein, feira de vinhos que acontece todo mes de Março em Düsseldorf, e pra continuar visitando a regiao sempre que passarmos por ali.
Os dez minutinhos da Frau viraram hora e meia, mas saímos todos satisfeitos com os aromas, sabores, conversas e garrafas do Mittel Mosel.
Bom que fica no caminho. Quando acabar é só passar ali e encher o tanque.
1 comment:
Querido Bresson,
Queria ter estado junto com vcs, mas essas coisas boas só acontecem com os Bressons. Hihihi.
To rindo sozinha. Nem vou perturbar mais o Luis por ter comprado tanto vinho.
Bjokas,
Manu
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