Viena (chove lá fora e aqui...)
Escrita em Dez/2021 como "encomenda" a um pasquim digital brasileiro, este artigo foi minha primeira e única contribuicao ao citado. Nao aceito e, consequentemente, nao publicado, uso meu espaco para torná-lo publico.
E aí? Acha que minhas linhas mereciam destino melhor?
"Quando Graciliano Ramos escreveu suas memórias, após ser preso injustamente em 1937, a palavra lockdown (confinamento) estava longe de pertencer ao noticiário e à rotina dos brasileiros.
Em 22/11/2021 a Áustria determinou novas regras de convivência em função da nova variante do COVID-19, a Omicron, oriunda da África do Sul. O confinamento voltou pra tentar conter a quarta onda da pandemia que insiste em assolar o planeta. É o quarto lockdown desde o surgimento da pandemia no início de 2020.
Engraçado que para muitos, a primeira sensação é de alívio por finalmente poder voltar a dormir até mais tarde e fazer o próprio horário, sem se tornar escravo da rotina corrida do dia-a-dia. A liberdade também pode ser relativa!
Apenas os serviços essenciais continuam abertos, inclusive as escolas. Nelas os alunos de 6 a 17 anos são testados três vezes por semana usando kits distribuídos gratuitamente em redes de farmácias. O video explicativo em alemão está disponível no YouTube e é bem fácil de ser compreendido mesmo por quem não fala o idioma. O resultado chega por email em 24 horas e o teste PCR é válido por 48 horas. Tudo isso de graça.
A sensação de estar dentro do filme "Feitiço do Tempo” (Groundhog Day, 1993) é cada vez maior. Bill Murray está preso em um único dia de sua vida. Todos os dias são iguais, mas somente ele percebe. A monotonia de se encontrar sempre com o mesmo ex-colega de faculdade naquele exato instante e local entre tantas outras situações, transformam sua vida numa rotina insuportável e enfadonha.
O novo normal na Europa já estava acontecendo antes da ômicron. O tilintar de taças de Riesling e de canecas de cerveja eram uma realidade. Os famosos cafés vienenses estavam cheios de turistas europeus e de outros continentes saboreando melanges e a famosa Sacher Torte, uma torta de chocolate com recheio de geléia de damasco tradicional em toda a Áustria.
O setor gastronômico, hoteleiro e de turismo em geral já faziam previsões otimistas para o fim do ano e férias de inverno. Até mesmo os Weihnachtsmärkte, os tradicionais mercados de Natal que encantam as cidades européias nessa época do ano, foram montados. Porém, justo no dia da abertura veio o lockdown como um golpe de misericórdia e os mercados ficaram abertos somente por um final de semana.
Os primeiros estudos dizem que a ômicron se espalha quatro vezes mais rápido, mas causa sintomas leves. Contamina com maior velocidade, porém é menos letal. Seria apenas uma preparação para outra variante com igual velocidade e mortalidade maior? Em breve saberemos.
Enquanto isso, o Brasil desfruta no momento de uma posição privilegiada em relação à Europa. Seis meses atrás a situação era o inverso. O ótimo ritmo de vacinação e a menor taxa de antivax na população brasileira contribuem para uma melhora no quadro geral com menos mortes e contaminações diminuindo a cada dia.
Na Europa há países com até um terço da população se recusando a tomar a vacina pelos mais diversos motivos. Desde mulheres grávidas com medo de sequelas na formação de seus bebês passando por lunáticos acreditando que junto com a vacina um chip de vigilância pessoal será instalado em seu corpo, os antivax ganham força e quem perde é a sociedade. Recentemente a vacina foi liberada pela Comissão Europeia para crianças entre 5 a 12 anos de idade.
Em Viena, centros de vacinação já estão adaptados aos menores e escolas irão vacinar as crianças a partir da segunda quinzena de dezembro.
Manifestações contra os passaportes verdes para os vacinados ou a favor do direito de ir e vir se tornaram frequentes nas capitais. Os justos, como sempre, pagando pelos pecadores. Se o acesso à informação e o conhecimento são universais, a ignorância e o obscurantismo também parecem ser.
No livro “Memórias do Cárcere”, Graciliano Ramos questiona a justiça social da sociedade brasileira e faz uma crítica à ditadura, então em vias de implantação.
Mais atual, impossível."
Pedro Silva
Viena, 03.12.2021