Estou aqui estacionado num hotel, a 800 metros da fronteira com a França, onde levanto velas amanha rumo à Baden Württemberg, mais especificamente, Kehl.
Como a barriga cresce enquanto o corpo padece, sempre tento dar umas corridas por aí. Especialmente em lugares onde jamais pisei antes. Em Saarbrücken costumo ficar perto do centro, da Altstadt, mas dessa vez, por algum motivo, a cidade está lotada. Achei esse, afastado, mas aconchegante.
Tendo uma floresta como ponto de referência, saí trotando e brigando com meu Polar que nao funciona mais. Passei por alguns restaurantes chegando numa rotatória com uma placa onde se lia "France". Nao prestei a atencao antes, mas logo após cruzar a linha imaginária entre os dois países o idioma mudou automaticamente. Como um canal de TV. Os carros deixaram de ser Audis, BMWs, VWs e Opels para se transformarem em Renaults, Citröens e Peugeots. Incrível isso.
Peguei uma viela ao lado da cerca de um parque, que depois percebi ser um cemitério, e fui subindo a ruazinha do bairro. No lado francês a cidade muda de nome pra Stiring-Wendel, ainda sob forte influência germânica, apesar de veículos e linguajar.
Stiring-Wendel (Moselle), Häuserzeile im Ortsteil Verrerie Sophie (Quelle: © die argelola regiofactum)
Me senti numa cidezinha do interior do Brasil, talvez de um Brasil que nao exista mais. Algumas criancas brincavam na rua. Maes faziam caminhadas com seus caes. Três moleques, cada um com sua mobilete, confabulavam um plano secreto. Mais a frente um Renault branco para, engata ré e dois jovens conversam. Poderiam estar apenas chegando o movimento noturno, passando a mercadoria e recebendo o montante, mas nao. Nesse bairro-cidade nao. Comentavam apenas da vizinha, colega de trabalho. As janelinhas de madeira, todas abertas, deixavam um pedacinho daquele cotidiano francês transparecer. Senti cheiro de grama cortada, novinha. De alho também ao passar perto duma cozinha. Imaginei o coelho assado com ervas marinando, esperando o marido chegar.
A curiosidade foi aumentando, indiretamente proporcional ao fôlego, mas segui em frente. Tudo simples e bem cuidado. Carros sob garagens pequenas, para uma unidade apenas. Um pai chamou a filha travessa que se escondia atrás do cortador de grama. Um trator estacionado mostrava orgulhoso a terra fresca em suas pás e arados.
Me lembrei de Joaíma, a princesinha do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. Minha tia Vânia e meus primos moraram boa parte de suas Vidas ali. Era uma graça de cidade, bem cuidada e arborizada. Tinha parquinho na praca principal, igreja na praca grande com duas bombas de gasolinha ao fundo. Era a descida pro Ipê, o clube campestre da cidade. Passava-se pela ponte de madeira do Anta Podre, curvava-se a esquerda e em frente a Cooperativa encarávamos a subida até o Olímpo. Na volta quase sempre rolava carona.
Ali a Vida era simples e rica ao mesmo tempo. Claro que alguns poucos fazendeiros eram pontos fora da curva, faziam política, mas zelavam pelo bem estar de todos. Os prefeitos nao roubavam e as famílias tradicionais alternavam no poder. Seu Nondas cuidava melhor do parquinho do que da própria casa. E a Momoça passava de quando em vez vendendo rosquinhas de leite condensado ou apenas pedindo uma banana pra matar o que a incomodava.
No Natal todos corríamos atrás das caminhonetes com papais noéis jogando balas e chocolates. Nas chuvas de verao, quantos foram mesmo?, a varanda molhada virava pista pra escorregar com a barriga. E as enchorradas lavavam nossas almas quando nelas nos deitávamos. As maiores preocupacoes eram evitar que o sorvete derretesse antes de acabar, chegar no parquinho tarde demais, perder carona pro Ipê na ida - na volta era catástrofe - e ir todo bonitao para o Domingo Alegre.
As viagens comecavam ao lado do meu avô e xará Pedro no ônibus da Gontijo. E acabavam do mesmo jeito após 30 a 40 dias de férias e toneladas de experiências vividas e estórias pra contar. Acho que vou parar por aqui já que os olhos estao marejados.
Mas voltando à França, vi aqui hoje uma ligaçao com esse passado da minha infância. Apesar das alegrias vividas e lembraças, fico triste em saber que no Brasil hoje em dia raros sao esses lugares tao comuns por aqui.