Vienna (com dois Ns é em inglês, mas fala Wien em alemão)
Cortar cabelo é um ritual masculino bastante peculiar. Dizem que o homem troca de mulher, de escovas de dente, de casa, emprego, carro e por aí vai, mas não troca de barbeiro. A não ser que mude de cidade.
Em BH eu sempre ia no Adir, ali na rua Pernambuco pertinho da praça da Savassi. Me lembro, aos 6 anos, indo com meu avô que além de cortar as madeixas ainda engraxava os sapatos naquelas cadeiras altas, tipo trono da rainha Elisabeth. Saia todo reluzente e pimpão pelas ruas após essa visita ao spa de homens. Adir era meu barbeiro preferido. Tinha uma tatuagem estilo marinheiro Popeye em um anti braço. Conversava o suficiente e respeitava o silêncio do cliente entre uma virada de página da revista e outra. Tinha uma fazenda e, após a morte do seu Vicente e consequente mudança de endereço ali pra perto do antigo Kid Batata & Pop Pastel, acabou assumindo tudo. Um belo dia disse que estava cansado e iria pra fazenda de vez. O salão seria fechado ou vendido. Nunca mais pus o pé lá.
Aqui em Vienna é a mesma coisa. Na minha primeira "vida" na cidade entre 2004 e 2006 ia sempre num turco baratinho perto da Kardinal Nagl Platz. Custava 8 euros sem chá, mas com direito a música ambiente direto e uma falação impressionante dos barbeiros. Nem no Grande Bazar de Istanbul a conversa era tao intensa. O corte ficava ótimo e era tudo que um estudante de doutorado podia querer: serviço bom e barato, só não era rápido.
Já em Düsseldorf dei a sorte de pegar o Herr Timmler, logo ali na Duisburger Straße pertinho de casa. E mesmo depois de nos mudarmos duas vezes dentro da cidade continuei fiel a ele. O google me informa seu primeiro nome: Gert (nao confunda com Gerd, o Trabi). Na verdade eu não cortava com ele e sim com seu compadre na salinha ao lado, Herr Schottler. Um alemão clássico com aqueles bigodes vistos em documentários sobre a Oktoberfest ou cidades no interior da Alemanha. Falava bastante, gostava de saber sobre o Brasil, as diferenças culturais e políticas, meu trabalho, família, hábitos alimentares e etílicos, viagens, etc. Era um verdadeiro divã com direito a corte de cabelo. Era bom pra exercitar o alemão.
Um belo dia Herr Schottler anuncia que iria se aposentar. "Como assim?!", perguntei incrédulo. Ele já havia me contado sobre a casa que tinha na ilha de Zamos na Grécia. Desfrutava o imóvel no verão e fazia o possível pra alugá-la no restante do ano. Em épocas pré-airbnb não devia ser nada fácil, a não ser que algum local o ajudasse na empreitada. Bem, durante o "discurso" de despedida Herr Schottler me informaria que estava de mudança para a Grécia. Em definitivo! Passaria o resto de seus dias comendo feta com tomates, azeite e vinho branco local apreciando o azul sem fim e único do Mediterrâneo. Uma montanha inteira de inveja e admiração se apossaram de mim. "Como pode um barbeiro ter casa numa ilha paradisíaca grega?!", me perguntei. Só mesmo na Alemanha. Me lembrei do Adir e sua fazenda, nesse momento transformado em haras de mangalarga ou cultivo de café na minha fértil imaginação. Ser barbeiro até que não seria uma má idéia!
Mas o motivo dessa crônica é Yusuf, o turco mal humorado que cortou meus cabelos hoje pela manhã. Desde que voltamos pra Vienna em 2014 vou ali na Barichgasse dar um trato no telhado. Yusuf me acolheu calorosamente com sua inconfundível cara fechada e pessimismo desde o primeiro dia. Me ofereceu chá, oferece até hoje, e perguntou como seria o corte. Aliás, pergunta até hoje como se já não soubesse. Deve ter memória curta. Respondo sempre "wie immer" em alemão, ou seja, como sempre, ora bolas!
O salão Mega é animado com várias mulheres fazendo permanente, pintando o cabelo e tagarelando no parte principal. Ao fundo, após subir 3 degraus, chega-se numa salinha chamada de o Reino de Yusuf. Tem cabideiro, um sofá confortável, uma mesa de centro com revistas antigas e desinteressantes, local para se lavar os cabelos, montanhas de toalhas e toda a parafernália típica de um barbeiro. Eu nunca ligo pra marcar horário. Esse meu hábito deixa Yusuf um tanto quanto puto da Vida. Digo sempre que não consigo me planejar, que a Vida com filhos é um eterno imprevisto e ele cai na minha lábia. Pede pra eu me sentar, diz que tem uns cinco clientes na frente, fora outros três que ligaram confirmando o horário e me pede paciência. Dois clientes depois ele me chama pra sentar no trono. Vai entender.
Hoje me contou que seu filho talvez tenha epilepsia! Fiquei atônito com a notícia e não soube o que dizer ao certo. Apenas disse que os médicos saberiam indicar o melhor tratamento e que tudo se resolveria da melhor maneira. No meio do corte a Ju me liga. Queria saber como tinha sido com o Gabriel na escolinha e me contava do Rafael. Yusuf foi me olhando com o rabo de olho, todo encafifado. A conversa se estendeu e eu tentava desligar sem sucesso percebendo os olhares venenosos. Yusuf deu a volta na cadeira por trás e me olhou de maneira incisiva. Ju me pergunta onde iremos almoçar e foi aí que cortei a conversa. Yusuf aliviado me diz que tem muitos clientes e não pode se dar ao luxo de esperar uma conversa trivial dessas. Pedi desculpas e seguimos em frente apesar de ver apenas um senhor folheando uma "Caras" alemã no confortável sofá.
"Em Ancara a comida é muito melhor do que em Antalya" me dizia um agora calmo Yusuf. Não conheço nenhuma das duas, apenas Istanbul, Izmir, Iskenderun, Adana, Eregli, Karabük, Bursa e outras cidadezinhas turcas graças ao emprego que tinha. A comida turca é maravilhosa, saborosa e rica em todos os aspectos. Sem falar no café e na patisserie com bastante pistache.
Nessa volta pela memória e pela Turquia dou graças a deus por não ser careca. Perderia essas valiosas sessões de terapia acompanhadas de corte de cabelo.
Cortar cabelo é um ritual masculino bastante peculiar. Dizem que o homem troca de mulher, de escovas de dente, de casa, emprego, carro e por aí vai, mas não troca de barbeiro. A não ser que mude de cidade.
Em BH eu sempre ia no Adir, ali na rua Pernambuco pertinho da praça da Savassi. Me lembro, aos 6 anos, indo com meu avô que além de cortar as madeixas ainda engraxava os sapatos naquelas cadeiras altas, tipo trono da rainha Elisabeth. Saia todo reluzente e pimpão pelas ruas após essa visita ao spa de homens. Adir era meu barbeiro preferido. Tinha uma tatuagem estilo marinheiro Popeye em um anti braço. Conversava o suficiente e respeitava o silêncio do cliente entre uma virada de página da revista e outra. Tinha uma fazenda e, após a morte do seu Vicente e consequente mudança de endereço ali pra perto do antigo Kid Batata & Pop Pastel, acabou assumindo tudo. Um belo dia disse que estava cansado e iria pra fazenda de vez. O salão seria fechado ou vendido. Nunca mais pus o pé lá.
Aqui em Vienna é a mesma coisa. Na minha primeira "vida" na cidade entre 2004 e 2006 ia sempre num turco baratinho perto da Kardinal Nagl Platz. Custava 8 euros sem chá, mas com direito a música ambiente direto e uma falação impressionante dos barbeiros. Nem no Grande Bazar de Istanbul a conversa era tao intensa. O corte ficava ótimo e era tudo que um estudante de doutorado podia querer: serviço bom e barato, só não era rápido.
Já em Düsseldorf dei a sorte de pegar o Herr Timmler, logo ali na Duisburger Straße pertinho de casa. E mesmo depois de nos mudarmos duas vezes dentro da cidade continuei fiel a ele. O google me informa seu primeiro nome: Gert (nao confunda com Gerd, o Trabi). Na verdade eu não cortava com ele e sim com seu compadre na salinha ao lado, Herr Schottler. Um alemão clássico com aqueles bigodes vistos em documentários sobre a Oktoberfest ou cidades no interior da Alemanha. Falava bastante, gostava de saber sobre o Brasil, as diferenças culturais e políticas, meu trabalho, família, hábitos alimentares e etílicos, viagens, etc. Era um verdadeiro divã com direito a corte de cabelo. Era bom pra exercitar o alemão.
Um belo dia Herr Schottler anuncia que iria se aposentar. "Como assim?!", perguntei incrédulo. Ele já havia me contado sobre a casa que tinha na ilha de Zamos na Grécia. Desfrutava o imóvel no verão e fazia o possível pra alugá-la no restante do ano. Em épocas pré-airbnb não devia ser nada fácil, a não ser que algum local o ajudasse na empreitada. Bem, durante o "discurso" de despedida Herr Schottler me informaria que estava de mudança para a Grécia. Em definitivo! Passaria o resto de seus dias comendo feta com tomates, azeite e vinho branco local apreciando o azul sem fim e único do Mediterrâneo. Uma montanha inteira de inveja e admiração se apossaram de mim. "Como pode um barbeiro ter casa numa ilha paradisíaca grega?!", me perguntei. Só mesmo na Alemanha. Me lembrei do Adir e sua fazenda, nesse momento transformado em haras de mangalarga ou cultivo de café na minha fértil imaginação. Ser barbeiro até que não seria uma má idéia!
Mas o motivo dessa crônica é Yusuf, o turco mal humorado que cortou meus cabelos hoje pela manhã. Desde que voltamos pra Vienna em 2014 vou ali na Barichgasse dar um trato no telhado. Yusuf me acolheu calorosamente com sua inconfundível cara fechada e pessimismo desde o primeiro dia. Me ofereceu chá, oferece até hoje, e perguntou como seria o corte. Aliás, pergunta até hoje como se já não soubesse. Deve ter memória curta. Respondo sempre "wie immer" em alemão, ou seja, como sempre, ora bolas!
O salão Mega é animado com várias mulheres fazendo permanente, pintando o cabelo e tagarelando no parte principal. Ao fundo, após subir 3 degraus, chega-se numa salinha chamada de o Reino de Yusuf. Tem cabideiro, um sofá confortável, uma mesa de centro com revistas antigas e desinteressantes, local para se lavar os cabelos, montanhas de toalhas e toda a parafernália típica de um barbeiro. Eu nunca ligo pra marcar horário. Esse meu hábito deixa Yusuf um tanto quanto puto da Vida. Digo sempre que não consigo me planejar, que a Vida com filhos é um eterno imprevisto e ele cai na minha lábia. Pede pra eu me sentar, diz que tem uns cinco clientes na frente, fora outros três que ligaram confirmando o horário e me pede paciência. Dois clientes depois ele me chama pra sentar no trono. Vai entender.
Hoje me contou que seu filho talvez tenha epilepsia! Fiquei atônito com a notícia e não soube o que dizer ao certo. Apenas disse que os médicos saberiam indicar o melhor tratamento e que tudo se resolveria da melhor maneira. No meio do corte a Ju me liga. Queria saber como tinha sido com o Gabriel na escolinha e me contava do Rafael. Yusuf foi me olhando com o rabo de olho, todo encafifado. A conversa se estendeu e eu tentava desligar sem sucesso percebendo os olhares venenosos. Yusuf deu a volta na cadeira por trás e me olhou de maneira incisiva. Ju me pergunta onde iremos almoçar e foi aí que cortei a conversa. Yusuf aliviado me diz que tem muitos clientes e não pode se dar ao luxo de esperar uma conversa trivial dessas. Pedi desculpas e seguimos em frente apesar de ver apenas um senhor folheando uma "Caras" alemã no confortável sofá.
"Em Ancara a comida é muito melhor do que em Antalya" me dizia um agora calmo Yusuf. Não conheço nenhuma das duas, apenas Istanbul, Izmir, Iskenderun, Adana, Eregli, Karabük, Bursa e outras cidadezinhas turcas graças ao emprego que tinha. A comida turca é maravilhosa, saborosa e rica em todos os aspectos. Sem falar no café e na patisserie com bastante pistache.
Nessa volta pela memória e pela Turquia dou graças a deus por não ser careca. Perderia essas valiosas sessões de terapia acompanhadas de corte de cabelo.