Meerbusch (um green sempre desce bem!)
Quando Pheidippides (ou Fidipedes) correu os 233 km de Atenas até Esparta, em dois dias, para pedir ajuda aos atenienses para derrotar os persas, nao sabia que estaria criando uma modalidade esportiva que hoje em dia movimenta a Vida de milhares de pessoas. Os atenienses se negaram a ajudar antes do fim do Festival de Artemis que ocorria na ocasiao. Fidipedes correu de volta os mesmos 233 km trazendo a péssima notícia. Foi entao que os comandantes da capital grega decidiram fazer um ataque surpresa ao acampamento dos persas, localizado a exatos 40 km dali, no vale de Maratona. Com um preparo físico invejável, mesmo após percorrer a distância e sendo minoria, os atenienses venceram a batalha.
Nos primeiros jogos olímpicos da era moderna, em 1896 na mesma Atenas, Fidipedes foi homenageado com a criacao de uma prova de longa distância com 40 km ganhando o nome de Maratona. Por obra e graca da realeza britânica, quem mais, a distância original foi alterada na Olimpíada de 1908 na Inglaterra. A organizacao da prova aumentou o percurso em 2.195 metros para que a família real pudesse acompanhar a largada da prova sem ter que sair do palácio de Windsor. E assim tudo comecou.
Sempre dei minhas corridinhas por aí, mas o máximo que havia corrido até entao foram os 18 km da Volta da Lagoa da Pampulha em 2003. Isso foi uma semana depois de voltar dos meus dois primeiros meses pela Europa onde bebi literalmente todos os dias. Acabei terminando a volta esbaforido em quase duas horas. Agora a distância seria mais que o dobro. E a identidade acusava 11 anos a mais, nao só de Vida como também de golo.
Minha "preparacao" comecou em janeiro deste ano, mas logo foi interrompida. Peguei uma gripe braba e minha mae chegou para as comemoracoes do meu aniversário, 29 de janeiro. Fiquei um mês sem fazer exercício físico. Meu personal trainer à distância e fisioterapeuta do Galo nas horas vagas, Bebeto, ia me passando os treinos semanais com distância e ritmo. Antes disso, pediu que eu fizesse alguns testes para descobrir meu limiar anaeróbico. Entao descoberto, partimos pras esteiras e ruas da Vida.
Sempre fui um mal aluno e disciplina nao é o meu forte. Nao consegui cumprir um único programa semanal, excecao feita as duas últimas quando a corda estava no pescoco. Fiz ainda pelo menos três viagens que impossibilitaram um avanco mínimo no treinamento, tanto em termos de distância percorrida como em velocidade.
Duas semanas antes o Bebeto me pede pra chamà-lo no skype. Com o semblante visivelmente preocupado comecou dizendo pra eu correr sem pensar no tempo. Pra ir me divertindo nas ruas até onde pudesse. Que se conseguisse completar a prova seria em mais de cinco horas, talvez seis. Disse que a fadiga muscular seria tao devastadora que impediria meus movimentos mecânicos básicos. Passou as duas últimas semanas de treino, que segui à risca finalmente, dicas de alimentacao na semana antes da prova, na véspera, café da manha e após a bendita. Pediu pra mantê-lo informado e qualquer coisa estaria a disposicao.
Pois bem, a distância máxima que havia corrido nos treinamentos havia sido 26 km. Nessas duas semanas antes da prova fiz dois tiros longos de 15 km e alguns dias depois outro de 20 km mantendo firmemente o ritmo de 10 km/h. Seria loucura tentar o mesmo na maratona. Bebeto disse pra segurar ao máximo no início e tentar manter entre 9 e 9,5 km/h. Comer tudo que me oferecessem e sempre beber água nos pontos de hidratacao.
Mal dormi a noite anterior, sábado passado. A expectativa antes da prova e a adrenalina só aumentavam. Fiz tudo direitinho, alimentacao, evitei álcool e carnes no churrasco de despedida do Alfredo e Raissa no dia anterior, dormi cedo e acordei mais cedo ainda pra tomar o desjejum programado. Já estava tudo preparado na véspera: tênis com meias adrede preparadas, short estilo ciclista com o bolso traseiro lotado de gel carboidrato, o número 4914 escolhido a dedo (49 da casa onde moramos e 14 o nosso da sorte) já pregado na camisa da
Choke, multinacional fabricante de kimonos para jiu jitsu e artigos esportivos, a roupa seca na sacola da organizacao pra me trocar no final.
Amanheceu e vi as ruas molhadas e frias, nada convidativas. Pelo contrário, seria muito mas fácil voltar a dormir ali no quentinho e escurinho agarrado com
Ela e Gabriel pra esquecer aquela maluquice. Perderia a grana da inscricao e pronto. Mas fiz questao de avisar a deus e o mundo no dia anterior via whatsapp sobre o evento. Já era. A maioria duvidou ou comecou a rezar pra eu chegar vivo no final. Uns poucos desejaram sorte e acreditaram em mim. Dois amigos que já correram maratona, Quinho e Nadinho, deram dicas valiosas. A principal veio do Nadinho, futuro CEO da AB Inbev, contando que no KM 30 uns ursos de 300 kg pulam nas costas dos corredores e seríamos obrigados a levá-los até o final.
Estacionei o carro em Oberkassel já que o centro estaria bloqueado. Peguei o metrô rumo a Tonhalle e no ponto bati papo com um, pra mim, quase profissional. O cara ia correr sua 16a maratona! Comecei a me alongar, 45 min antes da largada, e ele disse que de nada adiantaria a nao ser pra reduzir a tensao. Recomendou me esticar 15 min antes, no máximo. Deixei a sacola da organizacao no Garderobe, passei estrategicamente na casinha pra aliviar o peso e a tensao e fui chegando perto da largada. Nem vi os atletas top, geralmente quenianos. Os caras sao ETs que correm a 21 km/h de média. O vencedor terminou a prova em 2h e 8 min, um absurdo. Acho que nem de bicicleta consigo manter esse ritmo.
Sozinho e deus precisava de um golo d'água antes de partir. Vi uma garrafa ali pela metade, no canto, esquecida, e nao tive dúvidas. Às 9h em ponto foi dada a largada. A turma do gargarejo veio logo em seguida. A grande maioria corria num ritmo mais rápido que o meu. Deixo todos passar, cordialmente, me lembrando de segurar a onda no início. Afinal, nao estava apostando corrida com ninguém. A nao ser comigo mesmo. Meus objetivos eram: 1° terminar a prova e 2° completar em menos de 5 horas.
Durante a corrida alguns corredores-personagens se destacam dos demais. Aquele negao patola com um boné e uma Go Pro acoplada nele. Estava de amarelo e preto. Seria torcedor do Borussia Dortmund?! Por que se submetia àquela extenuante prova?! Alguma promessa?! Ou aposta?! Ele pigarreava muito logo no início, antes do KM 10. Até ali foi tudo muito bem e tranquilo. Apenas curticao, reparando nas pessoas e a cidade ao redor. De uma certa forma uma maratona deixa a cidade a sua disposicao. Exclusiva, sem trânsito, para que as ruas sejam percorridas à moda antiga. Tudo parado pra te ver passar. Com o nome escrito abaixo do número colado na camisa tornei-me uma celebridade por algumas horas. "Pedro, weiter, weiter!!!", algo como Pedro, continue, continue. Era o mantra da multidao quando eu passava. Sempre agradecia a todos que me incentivavam. Vez ou outra apareciam umas criancas com as maozinhas levantadas esperando você passar e bater fazendo high five.
No KM 14, o primeiro terco da prova, minhas pernas já arriavam. No posto de abastecimento seguinte caminhei e bebi a água com calma. Logo depois, um isotônico. E bananas! Nao sei se somos todos macacos, mas me tornei um chipanzé nessas quase cinco horas. Daniel Alves deve ter sido maratonista antes de jogador de futebol. Passei por baixo da ponte de Oberkassel pensando nao na distância que faltava, mas sim na que já tinha corrido. O negao ariete de amarelo ficara pra trás com sua Go Pro gravando pigarros ofegantes.
Correr a maratona foi a forma que encontrei de me solidarizar com a gravidez dEla. Como se eu tivesse que sofrer ao longo daqueles 42,2 km parindo no final minhas expectativas, dúvidas e falta de disciplina. E, quem sabe, uma merecida medalha. Mas o verdadeiro motivo era outro. No final vocês saberao.
Ali no KM 21, metade da prova, coincidentemente ao lado do consultório da ginecologista que tao bem nos atende, pensei: acabou a subida, agora é só descer a montanha! Naquele instante amarraram duas bolas daquelas de guindaste de demolicao em cada tornozelo. Os incentivos continuaram. Nunca ouvi tanta gente gritando Pedro, Pedro, Pedro! A cada caminhada bebendo água e nova arrancada comendo banana as perninhas de sabiá doíam cada vez mais. Cruzei a barreira mágica do KM 26, meu recorde pessoal até entao, e nada senti. Achei que entraria numa nova dimensao, veria anjos com harpas flutuando ao meu redor, mas nada disso ocorreu. No KM 28, com o segundo terco da corrida completo, me animei. Mantinha o lap pace em menos de 7 min por km. Faltava um terco!
Passei na esquina da casa de Floriano Peixoto e segui firme rumo ao Max Planck. Me lembrei das tantas vezes que ali cheguei pela manha de bike para mais um dia de cientista louco. Durante o doutorado foram várias as vezes em que nao via a luz no fim do túnel e queria jogar tudo pro alto. Mas nao sei por que tenho uma perseveranca nata que nao me deixa desistir de nada. Quase uma teimosia genética. Agradeco sempre a ela por tudo que fiz até hoje. Virei a esquina e avistei o fatídico KM 30. Os famigerados ursos estavam ali, atrás dos postes. Todos vestidos com as cores da BMW. Faziam propaganda de lancamento de um carrinho elétrico. Cada corredor que passava recebia um desses nas costas pesando 600 kg cada. Vamos em frente.
Vislumbrava o fim da prova. Era voltar pro centro, dar um rolé no Hafen e cruzar a linha de chegada. Os kilômetros demoravam cada vez mais a aparecer. Comecei a sentir dificuldades em respirar. Passando pelo Hofgarten os gritos de PEDRO, PEDRO, PEDRO ficaram ensurdesedores. Com um braco levantado agradecia, com o outro tampava um dos ouvidos evitando a surdez. Rasgamos a Immermannstraße e me lembrei que passaríamos em frente a Mövenpick. Roteiro melhor, impossível. Era como se visitasse todos os lugares que tanto frequentei ao longo desses 8 tantos anos.
Avistei o KM 35 dessa vez pensando nos sete restantes. Um japinha de azul seguia no meu ritmo. Às vezes mais rápido, outras ficando pra trás bebendo água. Acho que o ultrapassei no final. Já no Hafen o safado do Henrique, que corria a parte final do revezamento - míseros 9,3 km - me viu e gritou "Weiter Pedro, weiter." Xinguei o safado e voltei a me concentrar. Os incentivos da galera eram tao intensos e sinceros que o cansaco sumia e as pernas corriam sozinhas. Achava que teria problemas em me manter concentrado durante tanto tempo, mas tem sempre alguém ao seu lado te lembrando do objetivo final. Vi vários casais de 40, 50 e até 60 anos correndo juntos. Grupos de corrida batendo papo enquanto as pernas trabalhavam. Amigos contando casos e as distâncias passando. Uma festa!
Quando vi a placa do KM 40 foi como se tivesse vendo Moisés dividindo o mar Vermelho em dois. Ali, justamente naquele ponto, amarraram na minha cintura uma corrente com âncora de navio na ponta. E eu achando que nada mais haveria de acontecer. Serviram coca-cola no final, glicose na veia. Bebi os últimos goles antes da glória ali na Königsalle e segui rumo ao sprint final. Que no meu caso foi no mesmo ritmo capenga de sempre. Às vezes olhava pra trás conferindo pra ver se nao era o último! Hahaha.
Avistei o rio e vi a linha de chegada. PEDRO, PEDRO, PEDRO!!! Consegui, sobrevivi e venci a desconfianca que tinha de mim mesmo. Sensacao única que fez valer a pena cada passo dado desde a largada. Agora era chegar até a área de descanso e tomar uma bela cerveja. Dizem que é das melhores coisas pra se recuperar após as corridas. Acho que sempre soube disso, só faltava comecar a correr antes de tomar tanto golo.
Peguei minhas coisas e segui até a Tonhalle com um sorriso débil no rosto. Tomei dois bondes errados até chegar no carro. Achei que nao conseguiria dirigir, mas segui tranquilo pra casa da Rê e Albert. Ela estava lá me esperando, assim como meu amigo com um macarrao a bolonhesa e uma pale ale. Nao ia comer sem antes tomar um banho, dos melhores que já tomei na Vida. A maioria chegou a duvidar de mim. Nao recomendo duvidar de mim. Vocês vao se dar mal na maioria das vezes.
Querem saber o verdadeiro motivo de correr essa maratona: me despedir de Düsseldorf. Foi a forma que encontrei de homenagear a cidade percorrendo os vários lugares onde frequentei. A cidade parada, a minha disposicao, com muita gente gritando meu nome.
Vamos voltar pra Viena. Mas isso é uma outra estória.