Saturday, June 30, 2012

O Alemao Complexo

Düsseldorf (descanse em Paz)

Achei que nao fosse escrever esse post tao cedo. Hoje um grande amigo nos deixou. Vítima da pior doenca da Humanidade: câncer. O homem já foi milhares de vezes na lua, inventou de tudo um pouco, até a AIDS tem um controle melhor. Mas câncer nao.

Doenca ordinária, silenciosa, cruel, implacável. Chega sorrateira, despercebida. Quando o incauto se dá conta pelo menos um órgao já está comprometido. Se dá pra tirar, ótimo. Controle aqui e ali, quimio e radio, alimentacao, mudanca no estilo de Vida. Nada adianta. Estados Unidos, remédios experimentais, reza brava, umbanda, espiritismo. Sao como ratos invadindo os subterrâneos da alma. Cortam algumas veias aqui e outras ali. Mudam instalacoes. Abrem caminho nos tecidos como se fossem queijo. De repente algo os afugenta. Aparentam ter sumido mesmo. A cura. Após alguns meses ou anos, volta tudo de novo, em outro lugar. Nova vítima: rim, pulmao, cabeca. Só nao pode pegar o pâncreas ou fígado. Comeca tudo de novo. As famílias vao se exaurindo aos poucos. O doente comeca a perceber que nao adianta muito lutar. O Fim está infelizmente próximo. E nao interessa a idade, classe social ou cor. Ela chega, toma conta e só sai de cima quando a missao estiver cumprida.

O alemao complexo soube aproveitar a Vida. Arrumou algumas confusoes desnecessárias, é fato. Mas dava risada de tudo. Provocava, jogava com as pessoas, às vezes enganava por bem. Outras por mal. Nao houve má intencao na maioria das vezes. Era na verdade uma crianca que nao sabia lidar com o poder que tinha. Ficava testando tudo e todos, chegando nos limites. Às vezes ultrapassando-os e esgotando a paciência e confianca alheia. Voltava atrás, mas talvez já fosse tarde. Ou nao. Era bem recebido onde quer que fosse. Bem humorado, gostava de dar gargalhadas. Pedia desculpas antes de falar besteira. Caso raro. Viajou, conheceu o Mundo e suas coisas boas. Soube escolher algumas, outras passaram despercebido. Deu mais valor a carne do que a família. Se arrependeu. Contou tudo e colocou os pingos nos lugares. Demorou a valorizar quem o compreendia e confiava. Mas antes tarde do que nunca, reconheceu a grande amiga. Voltou pra casa, para o carinho do abraco das filhas. E até do cachorro. O conversível perdeu o sentido. Ar era o que ele mais precisava.

No final, tinha medo. Um arrependimento e a sensacao de injustica. Por que ele?! Sou novo ainda, tenho muito que viver. Corrigir alguns erros e cometer outros. Amanha eu falo, tenho Tempo. Percebeu que nao tinha volta. A doenca é implacável. O tic tac do relógio só aumentava. Contagem regressiva. Se despediu. Falou quase tudo que queria. Deixou orientacoes. Agradeceu. Isso foi o mais importante. Reconheceu quem sempre esteve ao seu lado. Acertou em Terra algumas contas melhorando o saldo.

Vou sentir falta. Do sorriso. Dos olhos azuis sinceros e sacanas. Do sotaque e das estórias mirabolantes. Da companhia, fugaz e rara, mas intensa. Gostava de spaghetti a bolognesa. E de carnaval e mulatas. Samba só no pé dos outros, ou melhor, das outras. Requebrando com ele ao lado. Era exigente. Comia do bom e do melhor, mas dava dicas. Como todo alemao, pao duro. Mas de coracao mole. Isso é o que importa. Fez muita gente feliz. Inteligente, competente, esperto. Achou que poderia enganá-la. Sempre deu um jeito em tudo e agora nao seria diferente. Mas Ela nao perdoa. Até hoje nao sobrou ninguém pra contar.

Pra morrer, basta estar vivo.

Descanse em Paz, amigo. Obrigado por tudo.