Tuesday, October 27, 2009

Mary & Max

Essen (far away from cosmic home...)

Fantástica essa animacao. Acabei de ver o trailer no MKO e compartilho com vocês. É do diretor australiano Adam Elliot e fala sobre amizade, autismo, taxidermia, psiquiatria, alcoolismo, obesidade, cleptomania, diferenças sexuais e religiosas, agorafobia, e otras cositas más.

Aproveitem.

Tuesday, October 20, 2009

Quem não acredita em cegonhas?!

Düsseldorf (ficou grande demais...)


















Tirei livre a tarde de segunda para executar a Missão München. Com o chefe sabendo e achando graça, a mulher dando apoio e Amor e o dono assinando embaixo, só não iria se fosse belga. Os belgas sofrem com as piadas dos holandeses e alemães assim como os portugueses com a nossa ironia.

Mochila nas costas, saio do trabalho, atravesso o parque, pulo no U-bahn, chego na estação central, vejo o ICE me esperando, caminho ate o vagão 21, entro e acho o assento 65 janela, mas com uma coluna imensa tampando a visão, troco de lugar, me acomodo e aguardo os vagões saírem da inércia.

Planejei trabalhar no trem lendo sobre um futuro projeto, procedimentos de gerenciamento e outros assuntos igualmente interessantes e fantásticos. Trem vazio, sem maiores emoções, saindo de Essen e passando por Duisburg, Düsseldorf onde moro, Köln (Colônia para os incautos), Frankfurt, Aschafenburg (não sei por que o ICE para nessa vila), Würzburg, Nürnberg e finalmente München ou Munique pra quem nunca teve o privilegio de visitar a capital da Bavária. Ligo pra Juju algumas vezes.

Na chegada logo me veio na lembrança a Oktoberfest. A Hbf (estação central) sempre lotada de turistas, bêbados, fantasiados, perdidos, ressaqueados, tristes, felizes, jurando nunca mais voltar, contando as semanas pra próxima edição. No caminho para o metro, olhei pra direita e vi o estacionamento de onde duas semanas atrás havíamos partido de volta pra casa depois de comparecer pela quinta vez nessa festa medieval e brutal para o fígado que os bávaros fazem todo ano em Outubro.

Comprei o ticket do U5 e esperei na plataforma. Entrei no vagão, sentei, tirei meu livro Conversa na Catedral, do Vargas Llosa, e fui lendo como se morasse em Munich desde sempre. Após cinco anos de Europa, as novidades não são tantas. É tudo muito parecido, em todos os países. Mais do mesmo, sempre. É confortável, mas ao mesmo tempo um saco. Era hora do rush, mas sem movimento algum que o caracterizasse. Os europeus gostam de ler, em particular os alemães. São donos do maior mercado e da maior feira editorial do mundo. Todo mundo lê em todos os lugares. Um silêncio absoluto entrecortado apenas pelo condutor anunciando, em bayerisch impossível de entender, as paradas e avisando que as portas se fecham após o sinal.

Desço na Quiddestraße pra pegar o ônibus 192 ate a Feldbergstraße 2 onde Gerd repousava desde a partida do dom Gomes dia 9 de Outubro. Desci do balaio filmando o momento. Escurecia e fazia um frio de rachar. Vi a placa da rua e uma casa com uma van branca na porta. Pensei: deve ser aqui perto o numero 2...

- Don Peter, é você?!

- Fala Gerd, claro que sou eu.

- Você vai me tirar daqui?! Não agüento mais olhar pra essas bicicletas velhas.

- E por isso que vim aqui. Vou entrar na casa, tomar um banho e caímos no cerrado, beleza?!

- Graças a Deus. Esse povo aqui é muito mercenário.

- E no mais, sofreu com a partida do Flavio?!

- Claro. Ele é demais. Meio doido também, você sabe. E volúvel. Vira e mexe se apaixona, mas sei como mantê-lo por perto.

- Acho que você saberá sim, mas a concorrência é grande.

- Não me preocupo com isso, só quero sair desse freezer ao ar livre.

- Isso é fácil.

Toquei a campainha da casa da Fátima, que me alugou os apartamentos pra Oktoberfest e quebrou o galho do dom Gomes e do Gerd durante esses 10 dias. Havia combinado de tomar um banho. O marido holandês abriu a porta. Falei “Wie geht es Ihnen”, sem resposta. Perguntou se viria buscar o carro, respondi que sim e ele “Gott sei Dank!” (Graças a Deus). Otário, pensei. Vou cagar no seu banheiro inteiro. Como sou educado, limitei-me ao meu combinado banho. Saindo do banheiro, Jan, o holandês babaca, me perguntou quando eu queria ir embora. Respondi, agora. Ele tirou sua van da frente da garagem enquanto eu entrava no Gerd. Conferi tudo, virei a chavinha de gasolina pra posição A (auf), puxei o afogador, dei a partida e... pegou de primeira, claro. Enquanto o holandês se afogava na nuvem azul, ajeitei os espelhos, arredei pra trás o banco colado no volante pra acomodar o pequeno polegar Gomes, puxei o cinto, engatei a ré e vamo simbora Gerd. Dei tchau pro holandês travestido de alemão e rua.

O mapinha indicava para seguir a avenida em frente ate o fim em direção a München Ostbahnhof. No caminho os bávaros olhavam curiosos pelo carrinho. Senti Gerd muito mais macio do que em Leipzig quando o busquei, sem folgas e trancos na direção. A oficina do Herr Drösser fez muito bem a sua saúde. Chegamos sem errar no terminal da DBahn chamado Autozug (auto-trem). No check-in o cara da DBahn disse nunca ter visto um Trabi por aquelas bandas. Dois trens partiriam naquela noite, um para Düsseldorf, outro para Hamburg. Eram vários vagões-cegonha gigantescos com dois andares. Capacidade para uns 80 carros acho eu. Ameacei entrar e Gerd morreu...

- O que foi?!

- Nunca andei de trem.

- E daí, tem sempre a primeira vez.

- É perigoso?!

- Claro que não. Deixa de ser fresco e entra logo. Você vai gostar.

- Capitalismo tem lá suas vantagens, né.

- Ah, tá começando a gostar. Vai ser frio, mas você agüenta fácil.

- Então vamos. Gira logo essa chave.

Entramos pela traseira da grande ave no segundo andar, de camarote segundo Gerd me contaria já em Düsseldorf (como aprendem rápido). O frio continuava trincando os ossos e me restavam quase duas horas até a partida. Tiro fotos de Gerd. Boa viagem. Pra você também. Procuro algo pra comer e nada. Só as infinitas variedades de pães alemães. Queria um salsichão. Saio da estação pelas ruas procurando um bar ou café e nada. Que lugar mais fracassado. Uma menina pega sua bike, tira o cadeado e se manda no frio escuro da noite bávara. Só me resta o Burger King.

Peço um Big King Menu com coca e mayo (alemão chama maionese de mayo, que meigos), sento numa mesa e começo a comer. Observo uma mãe com seus dois filhos e um casal de idosos. O velho é a cara do Doc de “De Volta para o Futuro”. O cabelo branco e esvoaçante e a cara de louco estão ali. A velha come com a mente em seu mundo. O marido da mãe dos meninos chega e começa a comer. Pego alguns papéis e vou anotando fatos do dia, seguindo recomendação de famoso escritor. Doc tem sono. Levanta a cabeça olhando pro teto, apoiando-se no próprio pescoço para trás, e cai no sonho. Penso: poderia ter comprado um sanduba maior. Os meninos terminam o lanche. Vou ficar com fome a noite, que merda. Vejo um clip do Muse. Duas velhinhas amigas, irmãs ou gêmeas se sentam ao meu lado. O pai dos meninos também acompanha o clip do Muse. Vai dar tempo de passar na livraria?! O olho é maior que a barriga, sempre. E no supermercado?! Satisfeito, levanto, deixo minha bandeja no local apropriado, não sei antes deixar cair, junto o lixo do chão, pego minhas coisas e me mando pra livraria da estação. Folheio algumas revistas, compro uma edição comemorativa de 100 anos da Audi com direito a poster e DVD, em alemão é claro, reparo na repercussão negativa da guerra civil carioca na imprensa mundial, passo no supermercado pra comprar o biscoito igual ao do adesivo no vidro traseiro do Gerd só que com cobertura de chocolate meio amargo, e caminho para a plataforma.

Vagão 265, Platz 103. Almofada, protetor auricular e água são a garantia de uma noite tranqüila. Entro na cabine e dou de cara com uma família. Pai alemão que trabalha na indústria química fabricando produtos para airbags, mas também para plataformas petrolíferas. Falo do Brasil, ele da Petrobrás. A mãe irlandesa conversa em inglês com suas duas filhinhas lindas e loiras. Devem ter sete e cinco anos, imagino eu. Não sou bom de contas para essas idades. Conto onde moro, eles também são de lá. Os quatro olhinhos azuis me olham curiosos, envergonhados, felizes, sinceros. São cinco camas e digo logo para escolherem os lugares que quiserem. Decidem que a do terceiro andar seria a minha. Ótimo, penso. E a escada pra subir ate lá? Perguntam o que fui fazer em Munich. Eu e o alemão procuramos pela escada, e nada. Conto do Gerd, eles caem na risada me achando simpático ou sendo apenas educados. Subo, arrumo minha cama, me acomodo, pego o livro. Tem lençol, coberta e travesseiro. Amo a Alemanha. A mais velha olha pra mim e diz ter encontrado uma cabine vazia lá na frente. Dou um sorriso e ela repete a frase indicando querer ficar a sós com sua família. Penso em mudar, mas, e se um gordo escroto e fedido tiver a mesma idéia?! E começar a roncar e peidar durante a noite?! Ela acha a escada debaixo da cama. O medo do desconhecido me ajudou. Coloca-a na posição ajudada pela mais nova e depois se deitam. Decido ficar. Mando um SMS de boa noite pra Juju. Quieto tentando não incomodar, apenas lendo meu livro e escutando a interação familiar em alemão e inglês. Quando será minha vez?!

O som dos trilhos me faz lembrar o filme Stalker do Tarkovsky. Vai só aumentando e martelando a sua mente, mesmo com o protetor. Uma sensação de descarrilamento me invade o pensamento. E se os vagões-cegonha, mais pesados, saírem de traseira numa curva levando toda a composição?! Durmo tranqüilo em seguida. O café da manhã seria as cinco da matina. O pai alemão recusou, ainda bem. Ele diz que já estamos em Köln. Passou muito rápido. Como estará Gerd?! Nunca andou por essas bandas.

Acordamos. Olho pra baixo e quatro olhinhos azuis devolvem na direção contrária. Pergunta em alemão onde moro. Respondo e quero saber onde ela vive. Diz, sorri e sai da cabine. Junto minhas coisas e saio no frio. Sou o último do trem. Alemão é um bicho meio impaciente. Quer ser produtivo o tempo todo. Encontro eles esperando no relento pela liberação dos carros. Idiotas. Ou então gostam de frio. São seis e meia, ainda escuro. Fico impaciente, contagiado pelos germânicos. Percebo que viajamos acompanhados de dois ilustres passageiros, um italiano e outro teutônico. Vieram de segunda classe ou andar térreo, me explicou Gerd. Abrem os portões e a turma avança por entre os carros nos dois andares. As mulheres e restante das famílias ficam aguardando pelos ansiosos companheiros. Caminhando entre o corrimão de aço e desviando dos retrovisores, chego no Gerd.



- Porra, me tira daqui.

- Hahaha, por quê?! Não gostou?!

- Quem vai rir sou eu quando tentar me ligar. Tá tudo congelado, brrrrr.

- Nada que um afogador não resolva.

- Veremos. Anda logo.

Guardo a mochila no porta-malas, entro, puxo o cinto, ligo o rádio e espero. Os carros da frente vão sendo liberados aos poucos. A cegonha chacoalha como se tivesse parindo. Abro a torneirinha. Acendo os faróis. Um funcionário tira as travas das rodas e me manda seguir. Puxo o afogador e dou a partida. Nada. Porra Gerd, não queria ir embora?! De novo e ele liga. Engasga pra sair, mas vai. Na saída ganha um tchauzinho da mãe e das duas princesinhas. Viramos a curva ainda no pátio de descarregamento e uma senhora olha e sorri.

Gerd vira celebridade instantânea por onde passa.

No ainda escuro caminho de casa, nada de especial. Acho uma vaga na porta. Uma menina em seu Toyota me olha curiosa. Tiro minhas coisas, fecho a porta e caminho pra porta de casa.

- Quero conhecer seu castelo.

- O que?! Como assim?!

- Me leva pra Essen com você hoje.

- Como sabe que vou pra lá?

- Sei tudo sobre você.

- Não duvido. Tudo bem. Espere meia hora.

- Bis bald.


Entro em casa. Largo tudo na sala, tiro a roupa e pulo na cama pra me esquentar na Juju. Pobre Gerd...

Tomo um banho, troco de roupa, pego minhas coisas e volto pro carrinho. Já é dia claro. Pego a Autobahn 42 no já conhecido ritmo noventaporhora. Os apressados alemães não perdem tempo olhando para Gerd. Só querem chegar logo no trabalho, ser produtivos, não perder um segundo sequer. Quase chegando em Essen, Gerd engasga e morre. Viro a chavinha para posição R de reserva, jogo terceira pra pegar no tranco, mudo pra quarta e seguimos em velocidade de cruzeiro. Um belo sol nasce iluminando o vale do Ruhr. Acho uma rua com estacionamento livre e paro. Pergunto a outro motorista se ali é de graça mesmo. Diz que sim e tiro minhas coisas. Vou saindo quando escuto:

- E o castelo?!

- Mais tarde. Na hora do almoço te levo lá.

- Tudo bem. Quero conhecer BeNeLux também. Soube que os castelos por lá são igualmente magníficos.

- Te levo na Villa Hügel primeiro, aqui ao lado. Era da família Krüpp. Essen foi a capital do aço alemão.

- Quero conhecer a Ligne Maginot.

- Meu irmão mora em Luxemburgo, fica perto. Onde aprendeu essas coisas?!

- Livros contrabandeados, clandestinidade. Você não sabe o que é isso.

- Estou atrasado.

- Levarei chocolates belgas pro Flavio.

- Sim, claro. São os melhores.

- E a tal erva?!

- Que erva?!

- Já falamos de Be e Lux. Falta Ne.

- Ah! Pirou?! Ou quer pirar?!

- Os dois.

- Lembre-se do protetor solar.

- Tá no porta-malas.

- Ótimo. Depois a gente combina BeNeLux.

- Faço questão de ir. Senão hoje você volta a pé pra casa.

- Isso é uma ameaça?!

- Não, uma negociação.

- Combinado então.

- Bom trabalho.

- Obrigado.

Saturday, October 17, 2009

Misto Quente (Ham on rye)

Düsseldorf (11° C, durante a semana o frio comeu solto)


Charles Bukowski escreveu esse livro em 1982 sobre um adolescente de origem alema vivendo nos Estados Unidos da recessao pós-1929. O que pode ser pior para Henry Chinaski, ou simplesmente Hank, do que crescer pobre, ter espinhas colossais, um pai autoritário e covarde, uma mae passiva e ignorante, nenhuma namorada e nem sequer uma pequena chance de ter uma, e um futuro com perspectivas de servir de mao-de-obra barata num mundo cada vez menos propício às pessoas sensíveis e problemáticas?!

Bukowski sempre escreve com pitadas autobiográficas e a origem de suas bebedeiras e alcoolismo sao mostradas crua e friamente neste relato. Hank é único, nao aceita as tendências e muito menos a Vida burguesa e fútil de seus colegas ricos. Necessita saber sempre a verdade e permanece numa busca incessante. Também nao tem muita paciência com outros problemáticos e nerds que o circundam sempre. Vai se tornando um ser cruel, bruto, ignorante, mas que no fundo só queria amar e ser amado.

Se sentia muito bem deitado em sua cama, a luz apagada, ninguém enchendo o saco ou ditando ordens. Nada pra fazer, uma sensacao de paz enorme. Ele dizia que se pudesse dormiria por 3 anos seguidos pulando a adolescência sofrida e solitária.

Ultimamente tenho a mania de dobrar a ponta das páginas dos livros e marcar com a unha alguma frase ou parágrafo que me interessam. Hank tem várias tiradas excepcionais. Vamos a elas:

Sobre escritores e o que os leitores esperavam deles: "Entao era isso que eles queriam: mentiras. Mentiras maravilhosas. Era disso que precisavam. As pessoas eram idiotas."

Sobre a verdade: "Encontrar uma verdade pela primeira vez pode ser uma experiência muito divertida. Quando a verdade de outra pessoa fecha com a sua, e parece que aquilo foi escrito só para você, é maravilhoso."

Ficando bêbado pela primeira vez: "Sentei no sofá. Ficar bêbado era bacana. Decidi que sempre me embebedaria. A bebida levava o que era vulgar para longe, e talvez, se você conseguisse ficar afastado do que era vulgar por tempo suficiente, pudesse escapar desse destino."

Sobre os filhinhos-de-papai e as meninas interesseiras ao redor: "Riqueza significava vitória, e vitória era a única realidade. Que tipo de mulher escolheria viver com um lavador de pratos?"

Beleza x hipocrisia x riqueza x dificuldades (ao assistir seu baile de formatura pela janela): "Havia um preco a ser pago por tudo aquilo, uma falsidade generalizada na qual facilmente se poderia acreditar e que poderia ser o primeiro passo para um beco sem saída. Enquanto eu observava os garotos e garotas dancando, dizia para mim mesmo que um dia minha danca iria comecar. Quando este dia chegasse teria alguma coisa que eles nao tem, algum dia serei tao feliz quanto voces, esperem para ver."

Injusticas: "Acho que o único momento em que as pessoas pensam em injustica é quando acontece com elas."

Lembrando da adolescência: "Que tempos penosos foram aqueles anos - ter o desejo e a necessidade de viver, mas nao a habilidade."

A bebida, única e fiel companheira: "A bebida era a única coisa que impedia um homem de se sentir para sempre atordoado e inútil."

A guerra: "Morrer na guerra nunca havia evitado que novas guerras acontecessem."

Outras pérolas:
"Jamais confie num homem de bigode perfeitamente aparado."
"Dê uma máquina de escrever a um homem e ele se tornará um escritor."

Esse foi meu primeiro Bukowski. Sua obra é vasta e vários romances viraram filmes como Factotum, Barfly e Tales of Ordinary Madness para citar alguns.

Mixto Quente é altamente recomendado e daria um bom filme. Será que alguém já fez um roteiro adaptado?!

Saturday, October 10, 2009

Gerd, der Trabi

Düsseldorf (os elefantes estao chegando)

Berlin, 12. Setembro 2009 - Sábado, GP Monza

Antes de falar sobre Gerd, vi essa miragem parado ao lado da East Side Gallery, os grafites naquele pedação do muro ainda de pé em Berlin. Um Melkus, motor de Wartburg e mecânica misturada desde com o Trabant. Waltinho + Gerd = Melkus. Apenas 101 unidades foram feitas segundo a Wiki. Coincidência ou destino?!













Na volta desse passeio, faltavam 15min pra terminar a classificação em Monza. Fingia tranquilidade ao lado da Juju e do Pedrão. Disse que estava com fome. Desculpa esfarrapada pra entrar num bar com TV. Achei um turco vendendo frango assado. Uma Samsung brilhava em cima da porta num suporte. Antes de pedir qualquer coisa, perguntei se poderia ligar a TV e sintonizar na RTL. Pedido atendido, peguei uma cerva e subi pro segundo piso. A visão era melhor. 

Leipzig, 13. Setembro 2009 - Domingo, GP Monza (Hamilton pole)

Saímos muito cedo de Berlin, às 7h da matina. Eu e Juju, companheira e amante inseparável, seguimos da Ostbahnhof em direção à mega Hauptbahnhof, vulgo Hbf. De lá, pulamos num regional até Leipzig onde Heiko - marido de Pia - dona do Trabi, nos pegaria às 10h. Às 9:30h chegamos na belíssima estação central esperando por Heiko, o ainda proprietário do Trabant ano 1988 comprado há quase 6 meses pelo jornalista e doido varrido Flavio Gomes, don Gomes para os íntimos.

O McDonalds era o ponto de encontro. Sugestão do Heiko. A antiga DDR realmente não é mais a mesma. Entrei no furgão com minha bagagem com destino a uma cidadezinha nas redondezas. Juju preferiu ficar com a amiga Cris para um passeio pela cidade. Um obscuro galpão guardava o carrinho desde o começo de Setembro por módicos 30 EUR. No caminho contei ao Heiko e seu filho sobre Waltinho, irmão mais velho e sofisticado do Trabi, da exportação para o Brasil, a coleção de +/- 26 carros e 3 motos do don Gomes, a volta em Interlagos, o blog, entre outras coisas. Paramos num posto pra encher um pequeno galão com gasolina e óleo 2T na proporção de 300ml de óleo a cada 10 lt de benzin, vulgo gasosa. Pedi para pagar, mas Heiko recusou. Disse que essa era dele.

A família Lorenz nos aguardava ansiosa. Pia, a dona e mãe, sua irma mais nova com a filhinha nos braços e o marido mecânico, a filha da Pia com Heiko que desenhava calmamente num livrinho, e Michael, o mecânico. Apresentamo-nos uns aos outros, olhei o carrinho rapidamente e logo me interessei por um Volga russo. Estava a venda por 9 mil EUR. Só o viadinho saltitante no capo custou 900 lascas. A primeira vista o Trabi parecia em boa forma. Olhando melhor, descobri dois riscos na carroceria de Duraplast, que não enferruja nunca evidentemente, mas resseca de vez em quando.

Heiko me explicou o funcionamento dos austeros equipamentos de série, inclusive a chavinha de gasolina igual a usada por mobiletes com reserva e tudo. O vidro do motorista não fechava direito e os três, Heiko, o cunhado e o mecânico, atacaram o problema e só saíram de cima após resolvido. O tanque de apenas 24 litros fica dentro do compartimento do motor, vulgo cofre. Não tem medidor no painel, apenas uma régua com escala mostrando de 0 a 24 lt presa no forro do capo. A agora famosa reguinha explicada pelo doido Gomes. A autonomia seria de 300 km com “pé embaixo” e de 400 km com uma tocada mais tranqüila. Heiko estava muito otimista. A reserva tem pouco mais de 4 lt.

Logo no começo percebi a carinha triste da dona Pia. Me contou que o Trabi se chama Gerd, e que assim gostaria que permanecesse. Antes de ir embora perguntei o motivo da venda. Ela havia comprado um Renault, que não durou muito, e logo em seguida um pequeno Toyota. Disse a ela pra não chorar, que Gerd estaria em boas mãos e em breve ganharia uma fantástica e numerosa família em terras tropicais. Que seu irmão mais velho, Waltinho, o aguardava saudoso e feliz por poder voltar a buzinar em alemão.

O cambio no volante em posição vertical na coluna de direção foi novidade pra mim. Como nunca havia dirigido um DKW, achei engraçado e fácil levar Gerd pelo asfalto agora novo do Leste alemão. O radio ocidental funciona perfeitamente, mas preferi o som do motor 2T acompanhado da fumacinha característica.

Após a sessão de fotos e agradecimentos mútuos, prometi enviar fotos e o endereço do Blig do Gomes para que a família Lorenz acompanhe as peripécias de Gerd pelo Leste Europeu e depois America do Sul.


Sai com Gerd pelo portão com Heiko ao meu lado observando meu desempenho. Seguimos numa tocada tranquila até o mesmo posto do galão. O alemão me elogiou na língua nativa com sotaque do Leste. Disse que eu era um ótimo motorista de Trabi. Ficou aliviado. Já no posto ele se despediu, entrou no carro do cunhado e se mandou sem olhar pra trás. Quem olha pra trás vira estátua de sal, diz a Condessa Julyanna von und zu Pampuglia com certa frequência.

Comprei óleo, coloquei 600ml seguidos de 20 litros e voltei pra pagar. Agia naturalmente, como se o Trabi fosse meu. Alguns olhavam, mas sem muita surpresa. Estavam acostumados.

Ao pagar, vi a dona passar um patê num pão de sal e colocar presunto. Não tinha comido nada. Perguntei quanto era e pedi um. A Coca veio junto.

Tinha que contar a novidade pro novo dono. Escrevi um SMS “Gerd (o Trabi) e eu estamos abastecidos indo pra Leipzig. Juju e Cris nos esperam pro almoço. Abração e obrigado.”, mas acho que ele nunca recebeu.

Logo após sair do posto, o primeiro de tantos outros, com o sanduba no banco, a coca no meio das pernas, a câmera numa mão e a outra pra guiando e mudando as marchas, fiz o video abaixo. Fiz uma edição tosca no iMovie, que aprendi a mexer ontem, e já pro vocêtubo:




Seguindo pela estrada da cidadezinha que levava até Leipzig Zentrum, peguei uma avenida. E não é que logo ali na frente seguia outro Trabi?! Cor gelo, um cara sozinho dentro que quanto viu o parente ligou os piscas, deu tchauzinho, buzinou. Fui seguindo ele até o Zentrum. Parei na estação e aguardei pela Ju e Cris. Olhava pro Gerd já imaginando a longa jornada até Düsseldorf. O carro ficou parado desde 2006 na casa da Pia. Aí vem um maluco a pedido de outro, pega ele e já enfia quase 500km no carrinho. Seria a maior viagem que ele faria na Vida. Viagem tão sonhada pelos alemães orientais até pouco menos de 20 anos atrás. Sair do Leste socialista em direção ao Oeste capitalista. O mesmo país que produzia Porsches, Mercedes e BMWs de um lado, fazia Trabants, NSUs, IFAs e Barkas do outro. Mesmo povo, idioma, cultura, costumes, músicas, mas separados por ideologias, por consequências de uma guerra onde eles tanto sofreram.

Consegui assistir a corrida após convencer as meninas a almoçar. Baixou um telão, desligou-se a música, veio cerveja e tome corrida. Não foi das melhores, mas matou a vontade. Na estrada, Gerd não decepcionou em momento algum. Saímos às 4 e meia com céu carregado e o frio de outono chegando tranquilo e sereno. Terceira pista da direita seria o habitat natural. Alguns caminhões iam ficando pelo caminho. Passar de 100km/h era forçar demais o carrinho. Estabeleci essa velocidade por que não tinha sentido forçar.

Gerd enfrentou intempéries bravamente. A chuva era constante. Os limpadores de pára-brisa foram desgastando durante o trajeto. Chegando em Düsseldorf o da esquerda ficou no ferro, quase arranhando o vidro. Paramos umas três ou quatro vezes para abastecer, descansar, comer, respirar. O ar quente esquentava, mas trazia junto o aroma da gasolina. Juju rezava pra que nada de errado acontecesse pelo caminho. Estava cansada, mas achava tudo ótimo. A folga na direção preocupava para o exame do TÜV, a inspeção obrigatória a que cada veículo alemão se submete. Sem TÜV não se muda o dono.

Chegamos às 23:30 fazendo o percurso em honrosas 7 horas. Em CNTP num carro normal, sem graça, charme e história sao entre 5 e 5:30. Na entrada triunfal na capital da Renânia do Norte e Westfália, a mesma por onde Napoleão invadiu a Prússia em 1700 e Kafunga, Gerd sentia que a missão tão sonhada por seu povo chegava ao fim.

Achei uma vaga na porta. Da janela dava pra ver ele. Depois do banho, abri a cortina pra espiar a rua. Um poste o iluminava. Parecia sorrir. Seus dias de marasmo e rotina casa-feira-escola-salao-casadasogra-casa chegaram ao fim.

E pensar que tudo começou assim.